terça-feira, 10 de setembro de 2013

Marta em Pirapora na saga de Seara Vermelha: apontamentos de leitura



Por Ernaldina Sousa Silva Rodrigues

Na saga de Jorge Amado, no livro Seara Vermelha, a família de Marta é recebida pelo Dr. Epaminondas, Inspetor Médico do Posto de Imigração do Estado de São Paulo. O doutor Epaminondas estava substituindo Dr. Diógenes, que conseguira sua transferência para a cidade de Santos. O médico era agente sanitário do governo paulista e estava em Pirapora para inspecionar os imigrantes que aguardavam o passe para São Paulo. Os imigrantes saudáveis, sem impaludismo, ganhavam o passe e viajavam por conta do governo paulista; porém, os doentes, para viajar, como não tinham meios para arcar com as despesas de viagem, ficavam em Pirapora na esperança de cura e de ‘passe’ que lhes garantisse seguir viagem.

Em Seara Vermelha Jorge Amado narra a história da família de Marta, uma jovem moldada pelo trabalho árduo e que assume responsabilidade na família, desde menina. Marta atravessou a caatinga e o sertão com sua família. Chegaram em Pirapora com a esperança de pegarem o trem para São Paulo, porém é alertada pelo Dr. Epaminondas que todos os membros de sua família poderiam partir, menos seu pai que estava tuberculoso. Ela então percebe que o médico estava tentando seduzi-la. Resolveu entregar-se ao médico para conseguir autorização para o pai e os outros membros de sua família viajar, exceto ela. É sempre interessante revisitar Jorge Amado e ler a saga de Marta que virou ‘puta’ em Pirapora, pelas mãos do médico Epaminondas.

O doutor Epaminondas a cobiça. Fica a sós com ela. A faz despir-se e a apalpa. Mais tarde, interessado no ‘prêmio’, antes de fazer-lhe a proposta, empenhou-se em ‘ajudar’ a ela e à sua família. Ela compreendia e a princípio quisera fugir, largar, tudo, contar a Jucundina (sua mãe). Mas refletiu e viu que então nada mais restaria aos seus, nem a casa onde viver, nem aqueles quarenta mil-réis que o médico ia lhe pagar por mês e mais o que ele dava a Tonho (seu sobrinho) para fazer recados. E, pior que tudo, desapareceria qualquer possibilidade do pai viajar e, se o pai não fosse, como iriam eles se arranjar em São Paulo? (...) Marta refletiu sobre tudo isso. Percebia que era impossível escapar ao médico. (...) Resolveu, então, quase friamente, entregar-se contra a autorização para o pai viajar e os passes para todos. Exceto ela, naturalmente. (AMADO, p. 183-184).
Tonho entrou em casa correndo. (...). Disse que que viu o doutor beijando Marta. Jucundina o levou dali, que Jerônimo não ouvisse. E o fez contar a cena toda, recomendado-lhe, depois silêncio. - Eu tava chegando, ia pedir um tostão à tia, o doutor estava agarrado com ela, beijando na boca... Saí correndo, eles não me viu. Quando Marta apareceu naquela noite, tinha um ar cansando, andava como se sentisse dores, mas sorria. Na mão trazia a papeleta que dizia ser Jerônimo homem de perfeita saúde, apto para embarcar. Jucundina pensava em conversar com ela, saber daquela história dos beijos, mas, quando viu a papeleta  compreendeu o que tinha acontecido e estremeceu, o coração partido de dor. Marta percebeu que a mãe compreendera e ficaram as duas silenciosas enquanto os homens comentavam. (...) - Se seu pai chegar a saber é capaz de matar o doutor... E bota tu pra fora... (Ibid, p.185-186).

Contudo, o pai de Marta tomou conhecimento do caso por meio de um dos imigrantes que não conseguira o passe: - Vosmecê não vale nada... Dero a honra da menina pelo atestado pro velho. Jerônimo teve um acesso de raiva quando soube. Se Jucundina não estivesse perto dele era capaz de matar a filha. Caiu em cima dela com um pedaço de tábua: - Puxa daqui, puta sem-vergonha! Desgraçada! Desgraçada! Eu, um homem velho, e essa desgraçada sujando minha velhice... Marta saiu ferida no rosto, correndo pela rua. (Ibid).


Marta não pode ficar muitos dias em casa de Epaminondas. O caso era muito comentado na repartição e mesmo fora dela (...) e corria que ele pusera casa para a cabrocha. Por outro lado, seu entusiasmo passara. Ela era de todo ignorante das coisas sexuais e Epaminondas acostumara-se às mulheres da vida, sábias de todos os vícios. Chegara uma rameira nova de Januária, uma que viera da Bahia com um sargento e o largara para fazer a vida; Epaminondas andava de olho nela. E Marta tomou o caminho do cabaré e da rua de prostitutas. Como era nova por ali, apareceu uma freguesia grande. Dias depois estava doente, mas custou a sabê-lo, nada entendia daquilo. Foi Epaminondas quem a tratou (herdara aquela clientela de Diógenes), mas tão distante e frio que nem parecia o homem ansioso de quinze dias passados. Marta emagrecera e agora pintava a cara e os lábios, fizera dois vestidos e comprara uns sapatos. (ibid, p. 187).


E era ela quem sustentava a família. Jerônimo e Tonho pediam esmolas mas os mendigos eram muitos. Continuavam a viver sob a árvore, na promiscuidade de dezenas de outros imigrantes, todos à espera do trem ou do passe. Jerônimo jamais voltara a falar na filha, mas cedo percebeu que o dinheiro com que Jucundina comprava farinha e feijão, café e carne-seca provinha dela, dos homens que dormiam com ela. Naquela viagem nada o ferira tanto, nada o magoara de tal maneira. Amava aquela filha e mesmo agora, quando a repudiara, era a sua imagem que levava no coração. Quando percebeu que o dinheiro era fornecido por Marta, teve uma cena violenta com Jucundina. Mas depois deixou de protestar. iria deixar que todos morressem de fome? A comida amargava em sua boca, estava com o peito cada vez mais cavado, a tosse aumentando. Via quando Jucundina saía para encontrar-se com a filha. E quando voltava, com mantimentos, os olhos vermelhos de chorar. Não dizia nada, aquilo tudo o matava mais rapidamente. (Ibid, p. 187-188).

No dia da viagem para São Paulo, Marta foi até a estação para despedir-se de sua família. Porém, Jerônimo, seu pai, não deixou que sua mãe e os outros se aproximassem dela. O trem resfolegava. A máquina começou a andar, vagarosa ainda. Aumentou a velocidade, Gregório saltara. Jucundina levantou-se então, afastou a mão de Jerônimo que a segurava, jogou-se para a janela. Jerônimo levantou-se também para obrigá-la a sentar-se. Mas em vez de fazê-lo debruçou-se sobre ela a tempo de ver ainda, no canto da estação, de vestido vermelho, a figura de Marta acenando com a mão. O trem apitava na curva. (Ibid, p. 190).

Triste, muito triste, a história de Marta: estuprada, violentada, humilhada por um médico sem escrúpulos, que queria somente saciar os desejos de sua carne. Quantas 'Martas' existiram e ainda existem para satisfazer os desejos de um homem por necessidade financeira? Quantas 'Martas' ainda precisam se prostituir para garantir o sustento de famílias? A história de Marta se confunde com muitas histórias contadas e denunciadas por esse Brasil afora. 

Seara Vermelha é um livro que busca uma representação da realidade, que trata das injustiças sociais e nos leva a refletir sobre a realidade que nos cerca.
  
AMADO, Jorge. Seara Vermelha. 37 ed. Rio de Janeiro, Record 1981.

Nenhum comentário:

Postar um comentário