terça-feira, 28 de outubro de 2014

Semente de Dragões


Leandro Konder

Uma das características essenciais da dialética é o espírito crítico e autocrítico. Assim como examinam constantemente o mundo em que atuam, os dialéticos devem estar sempre dispostos a rever as interpretações em que se baseiam para atuar.
 
Quando a filha de Marx pediu ao pai para responder a um questionário organizado por ela e lhe perguntou qual era o lema que ele preferia, Marx respondeu: “Duvidar de tudo”.

Para homens engajados num combate permanente, como os marxistas, é difícil colocar em prática esse lema. Com frequência se manifesta entre os marxistas uma tendência que os leva a substituir a análise concreta das situações concretas por um conjunto de fórmulas especulativas, por um esquema geral no qual as coisas são enquadradas forçadamente, precipitadamente. Essa tendência se manifestava já em Hegel, que era idealista, e continuou a se manifestar entre os marxistas.

Na medida em que se deixam influenciar pela tendência mencionada acima, os revolucionários passam a querer transformar o mundo sem se preocuparem suficientemente com a transformação deles mesmos. Com isso, perdem muito da capacidade autocrítica e não conseguem se renovar tanto quanto é necessário.

[...]A dialética não dá “boa consciência” a ninguém. Sua função não é tornar determinadas pessoas plenamente satisfeitas com elas mesmas. O método dialético nos incita a revermos o passado à luz do que está acontecendo no presente; ele questiona o presente em nome do futuro, o que está sendo em nome do que “ainda não é” (Ernst Bloch). Um espírito agudamente dialético como o poeta Bertolt Brecht disse uma vez: “O que é, exatamente por ser tal como é, não vai ficar tal como está”. Essa consciência da inevitabilidade da mudança e da impossibilidade de escamotear as contradições incomoda os beneficiários de interesses constituídos e os dependentes de hábitos mentais ou de valores cristalizados. 

A dialética intranquiliza os comodistas, assusta os preconceituosos, perturba desagradavelmente os pragmáticos ou utilitários. Para os que assumem, consciente ou inconscientemente, uma posição de compromisso com o modo de produção capitalista, a dialética é “subversiva”, porque demonstra que o capitalismo está sendo superado e incita a superá-lo. Para os revolucionários românticos de ultra-esquerda, a dialética é um elemento complicador utilizado por intelectuais pedantes, um método que desmoraliza as fantasias irracionalistas, desmascara o voluntarismo e exige que as mediações do real sejam respeitadas pela ação revolucionária. Para os tecnocratas, que manipulam o comportamento humano (mesmo em nome do socialismo), a dialética é a teimosa rebelião daquilo que eles chamam de “fatores imponderáveis”: o resultado da insistência do ser humano em não ser tratado como uma máquina.

É verdade que, em muitos casos, o que tem sido apresentado como dialética não tem passado de mera instrumentalização de algumas ideias de Hegel ou de Marx, mal assimiladas e ainda pior utilizadas. Mas a reação potencialmente mais eficaz contra essa deformação é a que provém da autêntica “dialética, que está sempre alerta para enfrentar as imposturas cometidas em seu nome; com o espírito rebelde que lhe é peculiar.

A dialética – observa o filósofo brasileiro Gerd Bornheim – “é fundamentalmente contestadora”. Ninguém conseguirá jamais domesticá-la. Em sua inspiração mais profunda, ela existe tanto para fustigar o conservadorismo dos conservadores como para sacudir o conservadorismo dos próprios revolucionários. O método dialético não se presta para criar cachorrinhos amestrados. Ele é, como disse o argentino Carlos Astrada, “semente de dragões”.

Os dragões semeados pela dialética vão assustar muita gente pelo mundo afora, talvez causem tumulto, mas não são baderneiros inconsequentes; a presença deles na consciência das pessoas é necessária para que não seja esquecida a essência do pensamento dialético, enunciada por Marx na décima primeira tese sobre Feuerbach: “os filósofos têm se limitado a interpretar o mundo; trata-se, no entanto, de transformá-lo.”

KONDER, Leandro. O que é dialética? 24 ed. São Paulo: Editora Brasiliense, 1988,  p.83-87.

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