terça-feira, 4 de junho de 2013

Cronotopo: algumas reflexões



Por Ernaldina Sousa Silva Rodrigues

Cronotopo é uma composição das palavras gregas cronos: tempo e topo: lugar. É um conceito usado por Mikhail Bakhtin para tratar da relação espaço-tempo no âmbito literário. Nesse sentido, o conceito aparece em Marília Amorim (2006) no texto Cronotopo e exotopia.[1] A autora desenvolve o conceito de cronotopia e os modos possíveis de abordar a relação tempo-espaço. O princípio primeiro de cronotopos[2] é o tempo, elemento privilegiado, articulado no espaço e culturalmente construído.

Na visão Bakhtiniana podemos pensar cronotopo como expressão da indissociabilidade da relação entre espaço e tempo que forma o todo em equilíbrio mas não se separa. O termo é entendido em toda a sua relação com a teoria da relatividade de Einstein. Indica a interdependência entre o tempo e o espaço. Expressa o indivíduo no tempo e no espaço. A concepção de tempo traz consigo uma concepção de homem e, assim, a cada nova temporalidade, corresponde um novo homem.[3] O cronotopo constrói a imagem do indivíduo dentro do texto literário, determinando as relações dos personagens e tornando concreto o espaço descrito no romance. Por esse ângulo, os índices do tempo descobrem-se no espaço e este é percebido e medido de acordo com o tempo.[4] O tempo transforma o individuo que transforma o espaço, num movimento dialógico, onde existe articulação com o espaço do outro. Esse movimento pressupõe abertura e inacabamento. Marca a dimensão histórica de fenômenos que estudamos como movimento em constante tensão e abertura. 

O cronotopo permite a materialização do tempo no espaço, como se o tempo se tornasse visível.  Segundo Marília (2006), o cronotopo para Bakhtin é uma das instâncias principais para o entendimento do texto literário. Ao longo de todo o texto, Bakhtin deixa claro que deseja saber, em cada época da história do romance, como o problema do tempo é tratado ou qual é a concepção de tempo que vigora.[5] Bakhtin acompanha a inscrição do tempo no espaço da representação.

Ana Lúcia Furquim de Campos[6] analisa o cronotopo da enunciação das propagandas impressas e televisivas da Coca-cola. No discurso publicitário, a autora afirma que as categorias de tempo e espaço são elementos importantes para a construção de sentidos de propagandas da Coca-Cola. Nas propagandas a idéia é de divindade, de “poder” trazer “alegria”, de “refrescar”, de satisfazer desejos das pessoas. Os discursos publicitários da Coca-Cola atingem o emocional do indivíduo, enfocando a idéia de prazer e refrescância ao tomar o refrigerante.  As campanhas estão sempre focadas com o momento presente e apresentam cenas dos mais diversos lugares para criar justamente a idéia de universalidade. Reforçam a idéia de que a Coca-Cola está presente todo o tempo em qualquer lugar, numa relação cronotópica indissolúvel.

Nessa perspectiva, Campos considera o tempo como um importante gerador de desejo, pois a cada momento as paixões renovam-se, modificam-se. O tempo anima os desejos e altera o espaço dando-lhe novas cores e sentidos. Isso ocorre porque o tempo está ligado a uma época, o que caracteriza o significado do ser humano. O ser humano molda-se à realidade de acordo com o espaço que ocupa. A idéia é de abertura e ajuste ao tempo-espaço[7].

O sentido que faço do cronotopo não é necessariamente o que Bakhtin faria ou o que Amorim interpreta e Campos analisa, mas  inspira-se neles.

O cronotopo na escola é assim regido pelo tempo da prescrição. O local de interseção da relação espaço-tempo na escola é a sala de aula. Ali acontece a realização dos trabalhos escolares.

Em um passeio pela história da institucionalização da escola primária no Brasil[8], percebemos a construção social e histórica do tempo na escola. A definição de tempos de aprendizagem, a relação entre escolarização de conhecimentos e tempos, a distribuição, utilização, constituição dos métodos pedagógicos, organização de turmas, classes e espaços escolares estão relacionados ao cronotopo. A escola passa a ser lugar coletivo com vivências múltiplas, definida pela ordem social.

Faria Filho e Vidal (2000) traçam um quadro da escola primária no Brasil do século XVIII ao século XX. Para eles, durante esses séculos, mais precisamente no período colonial, as escolas funcionavam em espaços improvisados onde os alunos permaneciam por quatro horas diárias. Naquela época, existia uma rede de escolarização doméstica[9] de ensino individual e de tempo individualizado. O centro era o ensino e a aprendizagem da leitura da escrita e dos cálculos.

Nesse período, começou a aparecer o debate sobre um novo método de ensino que culminou com a implantação do “método mútuo”, ou seja, possibilitava que um único professor lecionasse para até 1.000 alunos com a ajuda dos alunos-monitores, contando com espaços e materiais adequados, objetivando a organização e repartição dos conteúdos.

Com isso, nasceu a preocupação com a utilização do tempo na escola e sua articulação com outros tempos sociais, numa perspectiva mais produtiva do ensino.

A falta de prédios escolares apropriados também estava no debate político da época e levou o governo à criação das “escolas-monumento”, caracterizadas por edificações notáveis para funcionamento dos grupos escolares.

Com esses novos espaços as pessoas passaram a se adaptar à vida da escola, com novas referências de tempos e novos ritmos[10] . Os quadros de horários delimitavam o tempo escolar com uma distribuição diária, semanal, mensal e anual do processo de ensino, aprendizagem e avaliação. [11] A pretensão do governo era dotar os grupos escolares de normas e instrumentos de controle do tempo e de horários escolares. A escola passa a racionalizar o tempo e se adaptar ao ritmo da sociedade capitalista.

No século XX, nos anos de 1920 a 1930, tempo e espaço escolares são ressignificados pelo Estado e, a partir de 1970, os grupos escolares são extintos e passa a vigorar com a Lei 5.692/71 o ensino fundamental até a 8ª série.

Nessa breve retrospectiva histórica, percebemos que em um primeiro momento a relação tempo-espaço é indissociável e acompanha a evolução dos espaços onde o ensino era processado: em casa, individualmente ou em outros espaços improvisados e nos prédios públicos.

As escolas de improviso, monumentais e funcionais ocuparam um lugar no tempo em uma formação social e historicamente determinada e construída pela ideologia da classe dominante daquela época.

Hoje a escola funciona em espaços públicos e privados, com algumas possibilidades de ensino (presencial, à distância, semi-presencial, ensino mútuo) sem mudar de lugar (em casa ou em outros espaços), possibilitando o ensino presencial (turmas com até 50 alunos), à distância (em casa ou em turmas que variam o número de alunos), semi-presencial (estuda em casa com encontros técnicos presenciais na universidade) e ensino mútuo (cursinhos pré-vestibulares com mais de 100 alunos por turma). O tempo varia tendo sempre um espaço.

No espaço onde o ensino acontece encontramos outras pessoas, outras culturas em tempos que atravessam dias, meses, anos, décadas, séculos. Nosso contato com o outro obedece às variações do espaço e do tempo. A nossa necessidade nos torna mais dependentes do tempo em um espaço de ensino.

Tomando como exemplo os espaços de ensino à distância[12], encontramos ensino e aprendizagem sem limitação de tempo. Em muitos ambientes o tempo é materializado pelo aluno de acordo com sua disponibilidade e recursos tecnológicos. Entendemos, então, que o ambiente representa o papel do cronotopo. É no ambiente que o tempo acontece, se transforma e movimenta. O espaço onde o ensino acontece é histórico e social. Podemos pensar que se o tempo é uma construção histórica e espaço equivale a social, tempo-espaço é uma construção histórico-social intimamente ligada a cronotopo.

Nesse sentido, a escola é o cronotopo onde as transformações acontecem num movimento de tensão e abertura, de construção e desconstrução permanentes.






[1] AMORIN, Marília. Cronotopo e exotopia. In: BRAIT, Beth. Bakhtin: outros conceitos-chave/Beth Brait. (org.). São Paulo: Contexto, 2006, p. 95-114.

[2] Ibid., p.102.

[3] Ibid., p.103.

[4] Ibid., p.102.

[5] AMORIN, Marília. Cronotopo e exotopia. In: BRAIT, Beth. Bakhtin: outros conceitos-chave/Beth Brait. (org.). São Paulo: Contexto, 2006, p.102-3

[6] CAMPOS, Ana Lúcia Furquim de. A pausa que refresca... tempo e espaço nas propagandas da Coca-Cola. www.accessmylibrary.com/coms2/summary_0286-32017198_ITM. Acesso em: 03 nov. 2007.


[8] FARIA FILHO, Luciano Mendes; VIDAL, Diana Gonçalves. Os tempos e os espaços escolares no processo de institucionalização da escola primária no Brasil. Revista Brasileira de Educação, n. 14, p. 19-34, Mai/Jun/Ago, 2000.

[9] FARIA FILHO, Luciano Mendes; VIDAL, Diana Gonçalves. Os tempos e os espaços escolares no processo de institucionalização da escola primária no Brasil. Revista Brasileira de Educação, n. 14, p. 19-34, Mai/Jun/Ago, 2000.

[10] Ibid., p. 25.

[11] Ibid., p. 25.


[12] Estratégia de ensino e de aprendizagem sem uma proximidade física entre professor e alunos, realizada por meio de algum recurso tecnológico intermediário como cartas, textos, impressos, televisão ou ambientes computacionais.

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