Por Ernaldina Sousa Silva Rodrigues
Cronotopo é uma composição das palavras gregas cronos: tempo e topo: lugar. É um conceito usado por Mikhail Bakhtin para tratar da relação espaço-tempo no âmbito literário. Nesse sentido, o conceito aparece em Marília Amorim (2006) no texto Cronotopo e exotopia.[1] A autora desenvolve o conceito de cronotopia e os modos possíveis de abordar a relação tempo-espaço. O princípio primeiro de cronotopos[2] é o tempo, elemento privilegiado, articulado no espaço e culturalmente construído.
Na visão
Bakhtiniana podemos pensar cronotopo como expressão da indissociabilidade da
relação entre espaço e tempo que forma o todo em equilíbrio mas não se separa.
O termo é entendido em toda a sua relação com a teoria da relatividade de
Einstein. Indica a interdependência entre o tempo e o espaço. Expressa o
indivíduo no tempo e no espaço. A
concepção de tempo traz consigo uma concepção de homem e, assim, a cada nova
temporalidade, corresponde um novo homem.[3] O cronotopo constrói a imagem do
indivíduo dentro do texto literário, determinando as relações dos personagens e
tornando concreto o espaço descrito no romance. Por esse ângulo, os índices do tempo descobrem-se no espaço e
este é percebido e medido de acordo com o tempo.[4] O
tempo transforma o individuo que transforma o espaço, num movimento dialógico,
onde existe articulação com o espaço do outro. Esse movimento pressupõe
abertura e inacabamento. Marca a dimensão histórica de fenômenos que estudamos
como movimento em constante tensão e abertura.
O cronotopo permite a materialização do tempo no espaço, como se o tempo se
tornasse visível. Segundo Marília
(2006), o cronotopo para Bakhtin é uma das instâncias principais para o
entendimento do texto literário. Ao longo
de todo o texto, Bakhtin deixa claro que deseja saber, em cada época da
história do romance, como o problema do tempo é tratado ou qual é a concepção
de tempo que vigora.[5] Bakhtin
acompanha a inscrição do tempo no espaço da representação.
Ana
Lúcia Furquim de Campos[6]
analisa o cronotopo da enunciação das propagandas impressas e televisivas da
Coca-cola. No discurso publicitário, a autora afirma que as categorias de tempo
e espaço são elementos importantes para a construção de sentidos de propagandas
da Coca-Cola. Nas propagandas a idéia é de divindade, de “poder” trazer
“alegria”, de “refrescar”, de satisfazer desejos das pessoas. Os discursos publicitários da Coca-Cola
atingem o emocional do indivíduo, enfocando a idéia de prazer e refrescância ao
tomar o refrigerante. As campanhas
estão sempre focadas com o momento presente e apresentam cenas dos mais diversos lugares para criar justamente a
idéia de universalidade. Reforçam a idéia de que a Coca-Cola está presente
todo o tempo em qualquer lugar, numa relação cronotópica indissolúvel.
Nessa perspectiva, Campos considera o tempo como um
importante gerador de desejo, pois a cada momento as paixões renovam-se,
modificam-se. O tempo anima os desejos e altera o espaço dando-lhe novas cores e sentidos. Isso
ocorre porque o tempo está ligado a uma época, o que caracteriza o significado
do ser humano. O ser humano molda-se à realidade de acordo com o espaço que
ocupa. A idéia é de abertura e ajuste ao tempo-espaço[7].
O
sentido que faço do cronotopo não é necessariamente o que Bakhtin faria ou o
que Amorim interpreta e Campos analisa, mas
inspira-se neles.
O
cronotopo na escola é assim regido pelo tempo da prescrição. O local de
interseção da relação espaço-tempo na escola é a sala de aula. Ali acontece a
realização dos trabalhos escolares.
Em um
passeio pela história da institucionalização da escola primária no Brasil[8],
percebemos a construção social e histórica do tempo na escola. A definição de
tempos de aprendizagem, a relação entre escolarização de conhecimentos e tempos,
a distribuição, utilização, constituição dos métodos pedagógicos, organização
de turmas, classes e espaços escolares estão relacionados ao cronotopo. A
escola passa a ser lugar coletivo com vivências múltiplas, definida pela ordem
social.
Faria Filho e Vidal (2000) traçam um quadro da
escola primária no Brasil do século XVIII ao século XX. Para eles, durante
esses séculos, mais precisamente no período colonial, as escolas funcionavam
em espaços improvisados onde os alunos permaneciam por quatro horas diárias.
Naquela época, existia uma rede de
escolarização doméstica[9] de ensino individual e de tempo
individualizado. O centro era o ensino e a aprendizagem da leitura da escrita
e dos cálculos.
Nesse
período, começou a aparecer o debate sobre um novo método de ensino que
culminou com a implantação do “método mútuo”, ou seja, possibilitava que um
único professor lecionasse para até 1.000 alunos com a ajuda dos
alunos-monitores, contando com espaços e materiais adequados, objetivando a
organização e repartição dos conteúdos.
Com
isso, nasceu a preocupação com a utilização do tempo na escola e sua
articulação com outros tempos sociais, numa perspectiva mais produtiva do
ensino.
A falta
de prédios escolares apropriados também estava no debate político da época e
levou o governo à criação das “escolas-monumento”, caracterizadas por
edificações notáveis para funcionamento dos grupos escolares.
Com
esses novos espaços as pessoas passaram a se adaptar à vida da escola, com novas referências de tempos e novos
ritmos[10] . Os quadros de horários
delimitavam o tempo escolar com uma distribuição diária, semanal, mensal e
anual do processo de ensino, aprendizagem e avaliação. [11] A
pretensão do governo era dotar os grupos escolares de normas e instrumentos de
controle do tempo e de horários escolares. A escola passa a racionalizar o
tempo e se adaptar ao ritmo da sociedade capitalista.
No
século XX, nos anos de 1920 a
1930, tempo e espaço escolares são ressignificados pelo Estado e, a partir de
1970, os grupos escolares são extintos e passa a vigorar com a Lei 5.692/71 o
ensino fundamental até a 8ª série.
Nessa
breve retrospectiva histórica, percebemos que em um primeiro momento a relação
tempo-espaço é indissociável e acompanha a evolução dos espaços onde o ensino
era processado: em casa, individualmente ou em outros espaços improvisados e
nos prédios públicos.
As
escolas de improviso, monumentais e
funcionais ocuparam um lugar no tempo em uma formação social e
historicamente determinada e construída pela ideologia da classe dominante
daquela época.
Hoje a
escola funciona em espaços públicos e privados, com algumas possibilidades de
ensino (presencial, à distância, semi-presencial, ensino mútuo) sem mudar de
lugar (em casa ou em outros espaços), possibilitando o ensino presencial
(turmas com até 50 alunos), à distância (em casa ou em turmas que variam o
número de alunos), semi-presencial (estuda em casa com encontros técnicos
presenciais na universidade) e ensino mútuo (cursinhos pré-vestibulares com
mais de 100 alunos por turma). O tempo varia tendo sempre um espaço.
No
espaço onde o ensino acontece encontramos outras pessoas, outras culturas em
tempos que atravessam dias, meses, anos, décadas, séculos. Nosso contato com o
outro obedece às variações do espaço e do tempo. A nossa necessidade nos torna
mais dependentes do tempo em um espaço de ensino.
Tomando
como exemplo os espaços de ensino à distância[12],
encontramos ensino e aprendizagem sem limitação de tempo. Em muitos ambientes
o tempo é materializado pelo aluno de acordo com sua disponibilidade e recursos
tecnológicos. Entendemos, então, que o ambiente representa o papel do
cronotopo. É no ambiente que o tempo acontece, se transforma e movimenta. O
espaço onde o ensino acontece é histórico e social. Podemos pensar que se o
tempo é uma construção histórica e espaço equivale a social, tempo-espaço é uma
construção histórico-social intimamente ligada a cronotopo.
Nesse
sentido, a escola é o cronotopo onde as transformações acontecem num movimento
de tensão e abertura, de construção e desconstrução permanentes.
[1]
AMORIN, Marília. Cronotopo e exotopia. In: BRAIT, Beth. Bakhtin: outros
conceitos-chave/Beth Brait. (org.). São Paulo: Contexto, 2006, p.
95-114.
[2]
Ibid., p.102.
[3]
Ibid., p.103.
[4]
Ibid., p.102.
[5]
AMORIN, Marília. Cronotopo e exotopia. In: BRAIT, Beth. Bakhtin: outros
conceitos-chave/Beth Brait. (org.). São Paulo: Contexto, 2006,
p.102-3
[6]
CAMPOS, Ana Lúcia Furquim de. A pausa
que refresca... tempo e espaço nas propagandas da Coca-Cola. www.accessmylibrary.com/coms2/summary_0286-32017198_ITM. Acesso em: 03 nov. 2007.
[7] www.accessmylibrary.com/coms2/summary_0286-32017198_ITM. Acesso em: 03 nov. 2007.
[8]
FARIA FILHO, Luciano Mendes; VIDAL, Diana Gonçalves. Os tempos e os espaços
escolares no processo de institucionalização da escola primária no Brasil. Revista Brasileira de Educação, n. 14,
p. 19-34, Mai/Jun/Ago, 2000.
[9]
FARIA FILHO, Luciano Mendes; VIDAL, Diana Gonçalves. Os tempos e os espaços
escolares no processo de institucionalização da escola primária no Brasil.
Revista Brasileira de Educação, n. 14, p. 19-34, Mai/Jun/Ago, 2000.
[10]
Ibid., p. 25.
[11]
Ibid., p. 25.
[12]
Estratégia de ensino e de aprendizagem sem uma proximidade física entre
professor e alunos, realizada por meio de algum recurso tecnológico
intermediário como cartas, textos, impressos, televisão ou ambientes
computacionais.
Seu texto sobre cronotopo me ajudou. Gratidão!
ResponderExcluirFico super contente. 🙏
ExcluirSou estudante de letras e estava com dificuldades na compreensão do termo Cronotopo. Obrigada, ajudou bastante!
ResponderExcluirValeu! Fico feliz!
ExcluirEste comentário foi removido pelo autor.
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