quarta-feira, 1 de janeiro de 2014

Relação entre Estado, Governo e Mercado no Brasil ao longo do século XX: apontamentos de leitura

Por Ernaldina Sousa Silva Rodrigues


O Estado é uma organização que exerce o poder supremo sobre o conjunto de indivíduos que ocupam um determinado território. Sendo assim, não admite concorrência e exerce de forma monopolista o poder político que é o poder supremo nas sociedades contemporâneas. A preponderância do Executivo sobre os demais poderes do Estado se justifica pelas seguintes razões:
  • é o Poder Executivo, ou seja, o governo, que dispõe dos meios coercitivos do Estado;
  • é o governo que, por meio do seu aparato coercitivo, garante o cumprimento das decisões dos outros poderes e executa as políticas do Estado. É ao governo que compete recolher os impostos que sustentam o funcionamento de todos os poderes do Estado;
  • são as instituições do governo que garantem a segurança interna dos cidadãos;
  • é o governo que exerce o poder de polícia do Estado, que vai da fiscalização do cumprimento das normas à punição dos infratores.
  • é o governo que transforma em atos a vontade do Estado, o que é suficiente para fazer dele o poder preponderante sobre todos os demais;
Por outro lado, O Mercado pode ser definido como um sistema de trocas do qual participam agentes e instituições interessados em vender ou comprar um bem ou prestar ou receber um serviço.

Corrêa (2009) afirma que as relações entre Estado e Mercado nunca se repetem no tempo, renovando-se constantemente. O autor usa a dinâmica pendular para explicar as relações entre Estado e Mercado. Para ele, quando o pêndulo social chega ao seu ponto máximo à direita e os mecanismos de mercado mostram-se insuficientes para estimular o investimento privado, o desenvolvimento econômico e o bem-estar social, a sociedade começa a inclinar-se à esquerda, buscando cada vez mais a intervenção do Estado como forma de corrigir as falhas de mercado, sanar as suas insuficiências e recriar as bases para a retomada dos investimentos, a expansão da economia e o aumento do bem-estar.

De outro modo, quando o pêndulo social atinge o seu ponto máximo à esquerda e a intervenção do Estado na regulação da vida social e econômica não se mostra mais capaz de promover o crescimento econômico e o bem-estar dos indivíduos – passando a ser percebido como um empecilho ao investimento privado, que é a condição necessária para a expansão econômica nas sociedades capitalistas, tem início o movimento oposto da sociedade em direção à direita, com a retração do Estado em favor dos mecanismos de regulação de mercado.

O autor complementa ressaltando que a alternância contínua entre os princípios opostos explica-se pela impossibilidade de se encontrar o ponto de equilíbrio entre ambos e pelas virtudes e vícios de cada um, além das transformações do pensamento sociopolítico de cada sociedade em determinada época. Nesse sentido, o Estado figura como o contraponto indispensável ao mercado nas sociedades capitalistas.

A relação entre Estado, Governo e Mercado, segundo Coelho (2009), é uma “reflexão socialmente acumulada”, “com forte viés ideológico, alimentadas por diferentes visões de mundo, concepções e valores dos quais os indivíduos das sociedades contemporâneas, sem exceção, são portadores, conscientemente ou não.” (p.13).

As matrizes liberal e marxista procuram explicar essas relações. A matriz liberal tem raízes no pensamento dos filósofos iluministas (século XVII) e dos economistas da escola clássica do século XVIII. Por sua vez, a matriz marxista se inspira no pensamento do filósofo alemão Karl Marx.

Diante desse quadro conceitual, as correntes liberal e marxista se formaram combatendo as ideias e a ordem vigentes e propondo novas e mais justas formas de organizar a sociedade.

O pensamento liberal fundou-se no Jusnaturalismo e teve influência dos pensadores Thomas Hobbes, John Locke, Charles Louis de Secondat, barão de Montesquieu (1689-1755), e Jean-Jacques Rousseau (1712-1778). Nesse estado todos os indivíduos são iguais por natureza e igualmente portadores de direitos naturais aos quais eles não podem, em hipótese alguma, abdicar: os direitos à liberdade e à propriedade. Por se tratar de direitos humanos inalienáveis, a preservação da liberdade e da propriedade dos indivíduos seria considerada pelos liberais como cláusula pétrea de qualquer contrato social. Toda ameaça ou tentativa de usurpação desses direitos seria sempre espúria, pois contraria a razão da existência do próprio Estado. Ao universalismo intrínseco dos valores liberais estaria ainda associado um radical humanismo, que romperia com o princípio do fundamento divino da lei e do poder dos governantes, também vigentes até o século XVIII. A ideia de que a união política surge de um pacto de submissão, por meio do qual cada indivíduo abre mão do uso legítimo da sua força física, transferindo-o ao Estado, repousa sobre a noção, até então desconhecida, de representação popular como fundamento do exercício do poder político.

Diferentemente do liberalismo, na corrente marxista a dinâmica das sociedades passa a ser compreendida e analisada a partir das relações estabelecidas entre os seus grupos sociais concretos e não mais indivíduos abstratos. Portanto, sob a ordem liberal dominante na sociedade capitalista – aparentemente livre e igualitária e pretensamente fundada nas leis da natureza – existiria de fato uma ordem burguesa, ou seja, que atenderia, antes de tudo, aos interesses econômicos da burguesia, assegurando o seu lugar de classe dominante na sociedade.

A matriz marxista defende a história da humanidade como a história das lutas de classe.  De acordo com essa concepção, o movimento da história não seria aleatório ou indeterminado, nem tampouco contínuo, mas se desenvolveria por meio de contradições, isto é, dialeticamente. O movimento dialético da história se daria no plano concreto das relações de produção da riqueza social.  Sendo assim, o movimento da história seria interpretado e explicado por meio do materialismo dialético. As classes sociais seriam identificadas e definidas por sua inserção no processo produtivo, resultante da divisão social do trabalho. Em cada período da história, as classes fundamentais de uma sociedade seriam aquelas diretamente ligadas ao modo de produção dominante. Esse modo de produção iria resultar da combinação das forças produtivas e das relações de produção. Marx explica que antes que surgissem as primeiras civilizações, o modo de produção predominante teria sido o do “Comunismo primitivo”. Então, a garantia da preponderância da classe dominante sobre a classe dominada seria a principal razão do surgimento e manutenção do Estado. A ideologia dominante em uma determinada sociedade seria também a ideologia da sua classe dominante. O sistema capitalista é baseado na exploração do proletariado pela burguesia. A mais-valia é a parte do valor criado pelo trabalho humano e não apropriada pelos trabalhadores.

A economia e a sociedade capitalistas passaram por mudanças  no plano político e econômico que afetaram o posicionamento das duas correntes. Coelho (2009) afirma que, ao longo do século XX, a matriz do pensamento marxista e a matriz do pensamento liberal iriam sendo enriquecidas com outras contribuições e aportes analíticos, de forma a poder continuar explicando um mundo cuja dinâmica não era mais passível de ser compreendida apenas pela ótica dos teóricos envolvidos. Diante dessa afirmação, pontua-se algumas mudanças:

a) Democratização das sociedades liberais com a adoção do sufrágio universal masculino. Com o surgimento da democracia, iria se abrir aos operários industriais a oportunidade de participar do processo político, elegendo seus representantes, influenciando a ação do Estado de dentro do parlamento e, eventualmente, chegando ao poder pela via eleitoral;

b) No campo marxista iria se afirmar a percepção de que o capitalismo havia mudado de padrão, deixando de ser um sistema concorrencial – em que as empresas disputavam um mercado em relativa igualdade de condições – para se tornar num sistema monopolista – em que grandes conglomerados dominariam, de fato, a produção, numa concorrência desigual com as empresas familiares e de menor porte;

c) Para os liberais duas importantes mudanças ocorridas nas sociedades capitalistas durante o século XX, que desafiavam a interpretação liberal dominante no século XIX, precisariam ser explicadas: a compatibilidade entre democracia e economia de mercado, e a convivência entre esta e a crescente intervenção do Estado no domínio das relações econômicas;

d) No campo liberal a anterior crença em um mercado autorregulado deu lugar ao reconhecimento da necessidade de intervenção do Estado na economia, embora a extensão dessa intervenção viesse a se tornar no grande ponto da discórdia;

e) De forma análoga a ideia anteriormente consensual de que governo da maioria e economia de mercado seriam incompatíveis iria se desfazer chegando inclusive ao seu oposto;

f)  Se a democracia dos antigos era, de fato, incompatível com o liberalismo, a democracia dos modernos passaria a ser vista como indissociável do liberalismo, tanto quanto os direitos civis e políticos que já compunham a sua matriz;

g) Assim, a democracia do século XX passaria a ser adjetivada de liberal e defendida ferrenhamente pelos liberais em contraposição não mais à democracia dos antigos, mas a uma outra concepção de democracia que iria surgir no campo de pensamento adversário: a que opunha à democracia formal, dos países capitalistas, a democracia popular, ou substantiva, dos países socialistas.

As relações entre Estado e mercado conheceriam situações extremas ao longo do século XX. É possível identificar quatro padrões de relação entre Estado e mercado que foram sucessivamente dominantes em todo o mundo, segundo Coelho (2009): O Estado liberal até a Primeira Guerra Mundial; o Estado de Bem-Estar Social e o Estado socialista, que são contemporâneos um do outro; e o Estado neoliberal.

As mudanças de um tipo de Estado para outro se explicam pelas mutações na estrutura produtiva das sociedades industriais na virada do século XIX para XX e no acirramento do embate entre as diferentes forças políticas no interior das sociedades e a confrontação entre as nações industrializadas movidas por seus interesses econômicos, em busca da ampliação e defesa de mercados.

O Estado liberal, também conhecido como Estado mínimo, se imporia na Europa Ocidental contra o poder ilimitado dos reis, que reivindicavam o exercício do poder absoluto como um direito divino. Depois, o poder exercido pela realeza passou a ser limitado por uma constituição. Essa forma de Estado caracterizava-se pela garantia do direito à propriedade privada e à liberdade econômica e independência aos indivíduos; garantia do direito e usufruto da propriedade, da proteção da vida, do direito de ir e vir dos seus cidadãos e da ordem pública; não intervenção do Estado na economia – mercado como instituição autorregulável; mercantilização das relações sociais; garantia da participação dos cidadãos nas decisões públicas por meio de representantes eleitos; adoção do sufrágio universal masculino; e a distância das classes sociais e neutralidade em relação aos seus interesses específicos.

O Brasil, no que se refere às relações entre Estado e Mercado  no plano da regulação das relações econômicas e sociais, foi equivalente aos estados liberais. O que ocorreu aqui não estava deslocado do que se passava no restante do mundo ocidental, considerando que o país sempre manteve estreitas relações econômicas, políticas e culturais com a Europa e os Estados Unidos. A crise de 1929 afetou o Brasil e favoreceu a adoção de um modelo econômico centrado na substituição de importações e na intervenção estatal. Os estragos da crise foram sentidos em todo o planeta e também no Brasil.

Após a crise de 1929, começaria a ser desenhada no Ocidente, o Welfare State Keynesiano, ou o Estado assistencial ou ainda, o Estado do Bem-Estar Social. Na visão de Coelho (2009), o Estado de Bem-Estar Social sucede o Estado liberal, intervindo na economia e nas condições sociais, visando melhorar os padrões de qualidade de vida da população. No Brasil foi criado durante o governo Vargas e era chamado de Estado desenvolvimentista em decorrência da regulação do mercado e da promoção do bem-estar por meio de políticas públicas de educação, saúde, previdência, habitação etc., teve também o papel de promotor da industrialização do país.

O autor (Coelho) discorre também que se nos países capitalistas centrais a era da industrialização coincidira com o Estado liberal e antecedera a era das políticas sociais, trazidas pelo Estado de Bem-Estar Social, no Brasil as fases de industrialização e de criação de políticas sociais foram concomitantes e coincidentes com o Estado de Bem-Estar Social. No Brasil a construção do Estado desenvolvimentista não viria apenas acompanhada de políticas sociais e de desenvolvimento econômico, mas também de uma importante ruptura política. A Revolução de 1930 pôs fim ao Estado oligárquico e ao sistema de organização institucional sobre o qual ele se baseava. Coube então ao novo Estado construir, a um só tempo, as novas bases de desenvolvimento econômico e acumulação capitalista e de legitimação de uma nova ordem política no país, com a incorporação das massas no processo político. A montagem do Estado desenvolvimentista e a implementação das políticas sociais no Brasil estavam diretamente relacionadas ao desenvolvimento industrial do país. Ainda que as primeiras leis sociais brasileiras datem do final do século XIX – quando o país ainda estava longe de iniciar o seu processo de industrialização – aquelas seriam casuais e isoladas, não podendo ser consideradas como pertencentes a uma política social.

No entanto, com a crise provocada pela dificuldade cada vez maior de harmonizar os gastos públicos com o crescimento da economia capitalista, ressurgem as ideias liberais sob a denominação de neoliberalismo. O Estado neoliberal seria protagonizado pelos governos de Margaret Thatcher (Reino Unido) e de Ronald Reagan (Estados Unidos). A agenda neoliberal seria baseada na desregulamentação, privatizações e abertura de mercados. Os defensores dessa agenda argumentavam ser necessário desregular os mercados porque o número excessivo de regras e controles estatais sobre a economia inibia os investimentos privados, comprometendo o crescimento econômico. A favor das privatizações, alegava-se que as empresas de propriedade do Estado seriam ineficientes e deficitárias, porque mantidas sob a proteção do poder público ao abrigo das leis do mercado. Com a privatização as empresas poderiam se tornar eficientes e lucrativas, além de tirar do Estado o ônus pela sua manutenção. A abertura dos mercados nacionais para a concorrência internacional, era tida como única forma de produzir uma modernização de todos os setores da atividade econômica, conferindo-lhes eficiência e competitividade.

Os liberais do passado propunham que o Estado deixasse de intervir nas relações econômicas entre os agentes privados para que o mercado pudesse funcionar adequadamente como mecanismo autorregulador. Já as críticas dos neoliberais ao Estado do Bem-Estar Social são dirigidas à sua intervenção específica do Estado em determinadas esferas das relações econômicas como o mercado de trabalho, mercado de capitais e mercados de bens e serviços. Quanto às políticas sociais, estas manteriam seu lugar na agenda do Estado como direitos de cidadania e instrumentos de promoção da equidade.

Uma das características marcantes do Estado neoliberal é o aumento das disparidades de renda entre ricos e pobres. Essas disparidades causam indignação, revolta e injustiças ameaçando a paz e a dignidade das pessoas.

Para Ricardo Corrêa Coelho (2009), comparar o Estado neoliberal às formas de Estado passadas é sem dúvida difícil. Para compará-la, há necessidade de um distanciamento temporal.

O que podemos considerar é que as duas matrizes, liberal e marxista, animam e guiam até hoje a ação dos indivíduos no Estado e no mercado. 

Referência: 

COELHO, Ricardo Corrêa. Estado, governo e mercado / Ricardo Corrêa Coelho. - Florianópolis: Departamento de Ciências da Administração / UFSC; [Brasília]: CAPES: UAB, 2009.

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