Leandro
Konder
Uma das características essenciais da dialética é
o espírito crítico e autocrítico. Assim como examinam constantemente o mundo em
que atuam, os dialéticos devem estar sempre dispostos a rever as interpretações
em que se baseiam para atuar.
Quando a filha de Marx pediu ao pai para responder a um questionário organizado
por ela e lhe perguntou qual era o lema que ele preferia, Marx respondeu:
“Duvidar de tudo”.
Para homens engajados num combate permanente,
como os marxistas, é difícil colocar em prática esse lema. Com frequência se
manifesta entre os marxistas uma tendência que os leva a substituir a análise
concreta das situações concretas por um conjunto de fórmulas especulativas, por
um esquema geral no qual as coisas são enquadradas forçadamente,
precipitadamente. Essa tendência se manifestava já em Hegel, que era idealista,
e continuou a se manifestar entre os marxistas.
Na medida em que se deixam influenciar pela
tendência mencionada acima, os revolucionários passam a querer transformar o
mundo sem se preocuparem suficientemente com a transformação deles mesmos. Com
isso, perdem muito da capacidade autocrítica e não conseguem se renovar tanto
quanto é necessário.
[...]A dialética não dá “boa consciência” a ninguém.
Sua função não é tornar determinadas pessoas plenamente satisfeitas com elas
mesmas. O método dialético nos incita a revermos o passado à luz do que está
acontecendo no presente; ele questiona o presente em nome do futuro, o que está
sendo em nome do que “ainda não é” (Ernst Bloch). Um espírito agudamente
dialético como o poeta Bertolt Brecht disse uma vez: “O que é, exatamente por
ser tal como é, não vai ficar tal como está”. Essa consciência da inevitabilidade da mudança e da impossibilidade de
escamotear as contradições incomoda os beneficiários de interesses
constituídos e os dependentes de hábitos mentais ou de valores cristalizados.
A dialética intranquiliza os comodistas, assusta
os preconceituosos, perturba desagradavelmente os pragmáticos ou utilitários.
Para os que assumem, consciente ou inconscientemente, uma posição de
compromisso com o modo de produção capitalista, a dialética é “subversiva”,
porque demonstra que o capitalismo está sendo superado e incita a superá-lo. Para
os revolucionários românticos de ultra-esquerda, a dialética é um elemento
complicador utilizado por intelectuais pedantes, um método que desmoraliza as
fantasias irracionalistas, desmascara o voluntarismo e exige que as mediações
do real sejam respeitadas pela ação revolucionária. Para os tecnocratas, que
manipulam o comportamento humano (mesmo em nome do socialismo), a dialética é a
teimosa rebelião daquilo que eles chamam de “fatores imponderáveis”: o
resultado da insistência do ser humano em não ser tratado como uma máquina.
É verdade que, em muitos casos, o que tem sido
apresentado como dialética não tem passado de mera instrumentalização de
algumas ideias de Hegel ou de Marx, mal assimiladas e ainda pior utilizadas. Mas
a reação potencialmente mais eficaz contra essa deformação é a que provém da
autêntica “dialética, que está sempre alerta para enfrentar as imposturas
cometidas em seu nome; com o espírito rebelde que lhe é peculiar.
A dialética – observa o filósofo brasileiro Gerd Bornheim – “é fundamentalmente contestadora”. Ninguém conseguirá jamais domesticá-la. Em sua inspiração mais profunda, ela existe tanto para fustigar o conservadorismo dos conservadores como para sacudir o conservadorismo dos próprios revolucionários. O método dialético não se presta para criar cachorrinhos amestrados. Ele é, como disse o argentino Carlos Astrada, “semente de dragões”.
Os dragões semeados pela dialética vão assustar
muita gente pelo mundo afora, talvez causem tumulto, mas não são baderneiros
inconsequentes; a presença deles na consciência das pessoas é necessária para
que não seja esquecida a essência do pensamento dialético, enunciada por Marx
na décima primeira tese sobre Feuerbach: “os filósofos têm se limitado a
interpretar o mundo; trata-se, no entanto, de transformá-lo.”
KONDER, Leandro. O que é dialética? 24 ed. São Paulo: Editora Brasiliense, 1988, p.83-87.
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