Por Sérgio Haddad e Filomena Siqueira
A aproximação de 2015 e o vencimento de diversas metas
acordadas no sistema ONU, com destaque para as Metas do Milênio e as
metas do Educação Para Todos, abrem espaço para inúmeros debates e
questionamentos sobre o papel e efetividade dos acordos internacionais
na busca pela superação da pobreza no mundo em seus múltiplos aspectos.
Entende-se que a educação, sob a perspectiva de direitos, deve estar
acessível (gratuita para todas as pessoas sem discriminação), disponível
(instituições de ensino em número suficiente e apropriadas), ser
aceitável (adequada e relevante de acordo com os instrumentos de
direitos humanos) e
adaptável
(capaz de ajustar-se às demandas da comunidade educativa) a todos os
seres humanos igualmente sujeitos desse direito. Nesse sentido o Estado é
o garantidor central desse direito e deve ser responsável pela sua
oferta universal e gratuita.
Ainda que o reconhecimento da educação como um direito humano e a sua
implantação por governos tenha se fortalecido ao longo do século XX,
junto com a agenda dos direitos sociais, consequência do avanço da
socialdemocracia e das políticas keynesianas pós 1930, esse direito
nunca foi de fato alcançado universalmente e permanece como um desafio
mundial na agenda de desenvolvimento pós-2015.
Na proposta em discussão no âmbito da
ONU,
as novas metas para educação buscam, basicamente, garantir educação de
qualidade, equitativa e inclusiva e ao longo da vida para todos até
2030, ampliando, para isso, a oferta da educação na primeira infância, a
conclusão por meninos e meninas da educação básica, o aumento da
proficiência dos adultos em escrita e matemática, assim como a educação
terciária e desenvolvimento de habilidades profissionais entre jovens e
adultos, o aumento do contingente de professores qualificados, além do
incentivo a uma educação cidadã voltada para o desenvolvimento
sustentável e promoção de uma cultura de paz.
Ainda que essas metas se mostrem ambiciosas e resultado de um intenso
jogo de forças entre os envolvidos no seu processo de formulação, há
diversas questões que precisam ser consideradas para ampla discussão na
sociedade
1 - Apesar da proposta dos
Objetivos de Desenvolvimento Sustentável
(ODS) ter sido construída com maior participação de países, governos e
da sociedade em geral, para que ela possa ser apropriada são necessários
compromissos de parte dos governos e da comunidade internacional para a
sua implantação e financiamento, além de mecanismos de monitoramento e
controle por parte da sociedade para que não se torne mais um documento
de retórica, como foram os Objetivos de Desenvolvimento do Milênio (ODM). Afinal, quem se recorda das metas dos ODM para educação, qual é a parcela da sociedade que pode enunciá-las?
2 - Metas universais significam esforços desiguais
para cada país. Não podemos nos esquecer de que o mundo recente da
globalização é mais desigual entre os países e dentro de cada país. Isto
significa maior compromisso da comunidade internacional e de governos
nacionais para diminuir desigualdades em todos os níveis. No caso da
educação, é bom que se saiba, não haverá maior democracia educacional se
não houver maior democracia em outros campos: renda, saúde, trabalho,
habitação. Não há milagre a ser feito e não existe exemplo na história
da humanidade onde o acesso universal à educação tenha ocorrido de
maneira independente às melhorias em outros direitos sociais
3 - Os serviços educacionais sempre foram e serão temas de disputa
dos interesses do setor privado. No âmbito das Nações Unidas, ele está
presente, entre outros espaços, no grupo de trabalho específico chamado
Learning Metrics Task Force
(LMTF), cujo objetivo é catalisar o debate global sobre educação de um
foco em acesso para um foco em acesso e aprendizagem. As recomendações
formuladas pelo grupo foram apresentadas na série de três relatórios
intitulados
Toward Universal Learning que, dentre outras
limitações, deixa de fora o acúmulo construído nos últimos trinta anos
em torno da agenda global de educação, como o
Marco de Ação de Dakar em 2000, a construção das metas de
Educação para Todos e todos os encontros da
Confitea,
fazendo com que a discussão sobre os desafios da educação de qualidade
para todos recomece sem incorporar questões há muito debatidas e
aprimoradas nesses espaços
4 - Utilizando uma linguagem de mercado, os relatórios do LMTF afirmam que através de suas consultas e trabalhos desenvolvidos “a comunidade
educacional alcançou um consenso sobre as habilidades e competências
que são importantes, assim como um conjunto de indicadores possíveis e
desejados para serem monitorados ao nível global”. Que
comunidade educacional é essa? Como é possível estabelecer habilidade e
competências no plano internacional em um mundo tão desigual? Quem
garante que elas serão as mesmas para uma população nos países nórdicos e
uma população na faixa de Gaza ou afetada pelo vírus Ebola?
5 - O foco do LMTF se concentra na mensuração e avaliação de aprendizagem, como, por exemplo, o PISA,
levando a entender que esse processo proporciona a melhoria na
qualidade da educação na medida em que provoca competição e comparação.
Se não podemos estabelecer habilidades e competências internacionais,
como avaliá-las? Por outro lado, ao se concentrar na avaliação (outputs) e não nos insumos (inputs),
tais como professores bem preparados e remunerados, escolas adequadas,
acesso, políticas afirmativas, acabam responsabilizando “o termômetro
pela cura da febre e não o tratamento das suas causas”
6 - Ainda que tenham entrado nas metas o aumento
das habilidades de escrita e matemática entre jovens e adultos, esse
grupo é significativamente preterido quando se discute acesso à
educação, a não ser na formação para o trabalho. São mais de 770 milhões
de pessoas acima de 15 anos sem nenhuma escolaridade e pouco se discute
sobre o direito à educação básica para jovens e adultos, como se fossem
caso perdido.
Depois do acordo a ser estabelecido em setembro pela Assembleia das
Nações Unidas sobre os ODS, passamos a um segundo passo dentro da Agenda
pós 2015, quando se estabelecerá os meios para implementá-los e como
será o seu financiamento. No campo da educação, o modelo que tem surgido
como alternativa de ampliação da oferta educacional, por pressão do
mercado, são as Parcerias Público-Privadas.
Esse modelo de gestão dos serviços públicos, que antes se concentrava
mais em infraestruturas econômicas (transporte e pontes, por exemplo)
vem crescendo no campo social (escolas e hospitais), principalmente nos
países em desenvolvimento. Sem uma clara definição sobre o seu papel e a
forma como se dará, essa alternativa é altamente complexa e exige
extensa reflexão e questionamentos, como, por exemplo, a possibilidade
de transferência do setor público para a iniciativa privada da
responsabilidade pela oferta do ensino, a transformação da condição da
educação como um direito humano em um serviço cujo objetivo final é a
geração de lucro, além dos problemas relacionados ao conteúdo
curricular, investimentos na carreira docente e fortalecimento da
educação como uma política pública estratégica para o desenvolvimento de
uma nação mais coesa social e economicamente.
Os meios para realização dos ODS, indicados no Objetivo 17, se
tornaram, na atual discussão, um ponto central de debate. Entretanto, a
pluralidade de atores envolvidos no processo de renovação das metas
globais, ao mesmo tempo em que demonstra a ampliação do acesso a esses
espaços por um número maior de participantes, o que é positivo do ponto
de vista democrático, também torna o processo muito mais complexo pela
forte presença dos interesses de mercado nestes tempos de globalização.
As propostas de metas, meios e financiamento se ampliam e o jogo de
forças e interesses se acirra.
*Sérgio Haddad é doutor em Educação, coordenador da unidade Internacional da Ação Educativa e integrante do Grupo de Reflexão sobre Relações Internacionais (GRRI); Filomena Siqueira é formada
em Relações Internacionais, mestranda na área de Administração Pública e
Governo, pesquisadora da unidade Internacional da Ação Educativa e
integrante do GRRI.