terça-feira, 3 de setembro de 2013

A cidade de Pirapora na saga de Seara Vermelha: apontamentos de leitura

Por Ernaldina Sousa Silva Rodrigues

O Livro Seara Vermelha, escrito em 1946, pelo escritor Jorge Amado, foca seu enredo na saga de uma família de onze retirantes, expulsos das terras nordestinas onde moravam, que tomam o rumo de São Paulo. Nessa viagem de muita dor, a família atravessa a caatinga a pé, em meio à fome, muitas aflições e morte.  Dos onze retirantes, apenas quatro chegaram a uma fazenda de café em São Paulo. Porém, antes da chegada a São Paulo, os retirantes passavam por PIRAPORA - Minas Gerais, para serem examinados por um médico que lhes permitissem, ou melhor, lhes garantissem o ‘passe’ para seguir viagem. Os retirantes e outros imigrantes desembarcavam do vapor em Pirapora. 

Amado (1981) conta que "alguns ficavam para sempre em Pirapora. Dormiam na margem do rio, pelos matos, construíam choupanas no outro lado da ponte, roubavam e até assaltavam". No entanto, o escritor narra que não era fácil, "a não ser pelos pedidos gritados numa voz suplicante, distinguir os mendigos dos demais flagelados. A cidade lembrava uma visão apocalíptica, com aquelas centenas de homens rotos e esfomeados, os que esperavam o trem, os que ainda não haviam perdido a esperança de conseguir a papeleta de saúde, os que voltavam de São Paulo, os que faziam fila em frente ao posto de imigração. (AMADO, 1981, p. 176). 

Parece-me que o posto de imigração situava-se no Albergue Municipal, local onde as pessoas embarcavam no trem de ferro para São Paulo.  Essa passagem é narrada em belíssimos trechos retirados do livro de Jorge Amado intitulado Seara vermelha.

O pior era que estava correndo a notícia, espalhada ninguém sabe como nem saída de que boca, que em Pirapora não permitiam o embarque de doentes. Que os impaludados não podiam seguir viagem para São Paulo, o governo não pagava passagem. Se quisessem ir teriam que pagar o bilhete de trem e não levariam nenhuma garantia de trabalho. Que havia um médico do governo a examinar cada um e só os que conseguissem passar no exame, que era rigoroso, que tinham direito à passagem. (AMADO, p.143).

O desânimo invadiu o navio e era ainda mais concreto que o mau cheiro e os gemidos e as lágrimas e a febre. Vinham de percorrer os caminhos da fome e da doença, tão próximos da fatura será que não poderiam dar o último passo e alcançá-la, prendê-la nas ávidas mãos cansadas? (AMADO, p.143).

- Mato um... – dizia o mulato que fizera as compras em Juazeiro e que estava caído de impaludismo. (AMADO, p.143).

Jucundina ouviu a notícia, pouco se comoveu. Agora tinha fé nas palavras do beato, que ouvira repetir. O mundo ia acabar, estava perto do fim. Seria bom se acabasse logo, antes de eles chegarem a Pirapora. Assim nenhum mal podia mais acontecer. (AMADO, p.143-144).

O rio rugia na cascata, um barulho de ensurdecer. Ficaram vendo os passageiros de primeira desembarcarem. O caixeiro-viajante impaludado desceu carregado, diretamente para a casa de saúde. Na terceira todos se tinham posto de pé, mesmo os que ainda tinham febre, nenhum queria aparecer como doente, era o medo de não ganhar a passagem para São Paulo. Pediam notícia a toda gente que aparecia a bordo, como deviam fazer para conseguir os passes, aonde se deviam dirigir, que tal era o médico que fazia os exames, quando saíam os trens que levavam imigrantes. (AMADO, p.144).

Estavam novamente animados e, se bem ali fossem se separar para diferentes pensões, não faziam despedidas, esperando todos encontrarem-se no primeiro trem que saísse para São Paulo. (AMADO, p.144).

O mulato das compras, que era conversador e bem falante, conseguia informações do carregador. Ficou sabendo onde poderiam se hospedar. Havia umas pensões baratas, nas ruas de canto, que aceitavam flagelados, desde que o pagamento fosse adiantado. Mas soube outras notícias também. Que havia na cidade de Pirapora mais de trezentos imigrantes à espera de condução para São Paulo. Isso sem falar nos doentes, nos que não tinham conseguido o visto do médico. Esses não se contavam mais, tinham virado mendigos pelas ruas, ou trabalhavam em paga de comida nas fazendas da vizinhança. Sempre na esperança de conseguir o visto, renovando o exame médico de quando em quando. (AMADO, p.144).

- Vocês passam aqui uns dois meses quando nada...

Finalmente desembarcaram. Levavam suas trouxas na cabeça ou nos braços. Ficaram parados na ribanceira onde as canoas os deixavam, sem saber para onde se dirigirem. Carregadores mais caritativos indicavam os caminhos. (AMADO, p.144).

O sol era vermelho e queimava. Uma poeira cor de sangue subia pelas ruas, enchia os pulmões. A cidade de Pirapora dormia a sesta quando eles chegaram. Apenas os mendigos enchiam as ruas, dezenas e dezenas, pediam esmolas aos raros passantes. E aquela poeira densa que avermelhava as coisas e dava cor carregada ao cuspo. Adiante, a cascata rugia sob uma ponte abandonada. Eles foram marchando, aos grupos, no caminho das pensões baratas. (AMADO, p.144-145).

Lembro-me que o Albergue de Pirapora situava-se na confluência da Avenida Comandante San Thiago Dantas e Avenida Mascarenhas, com entrada pela Rua Pará e Av. Governador Valadares. Era uma rua muito estreita, um beco, por onde passava a linha do trem. Por muitas e muitas vezes passei por aquele beco. Hoje, parece-me que não existem nem o beco e muito menos o albergue. Fecharam as duas entradas de acesso ao Albergue. Pelo que percebo existe no local um viveiro de mudas cujo acesso se faz pela Avenida Comandante San Thiago Dantas. Interessante é que o Albergue municipal faz parte da história de Pirapora e da saga de Seara Vermelha. Segundo Heidegger: “a tradição é o esquecimento das origens”. Precisamos pensar no resgate desse local para podermos contar a  história.

Referência:

AMADO, Jorge. Seara Vermelha. 37 ed. Rio de Janeiro, Record 1981.

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