Demos os primeiros passos e alguns já falam em esgotamento do modelo, muitos com a esperança que se esgote, e com as vistas postas nas eleições.
Ladislau Dowbor*
Demos os primeiros passos e já falam em esgotamento do modelo, muitos
com a esperança que se esgote, e com as vistas postas nas eleições. A
comprovação estaria no “pibinho”. Tirou-se 36 milhões de pessoas da
miséria, ampliou-se um pouco a profundidade do mercado consumidor, e
agora teríamos de buscar outros caminhos. Na realidade não há
esgotamento, e os potenciais do desenvolvimento decente e sustentável
continuam centrados na redução da miséria, na inclusão produtiva, na
elevação da massa salarial e dos direitos sociais.
Entre 1991 e 2010 o aumento da renda familiar per capita medido pelo
IDH nos 5.565 municípios do país, esforço conjunto das Nações Unidas,
IPEA, FJP e IBGE, foi de 346 reais. Isto representa muito para os mais
pobres, mil reais por mês para uma família de três pessoas, mas é
suficiente? O estudo também mostra que neste período tivemos no Brasil
um ganho médio de 9 anos de expectativa de vida, passando de 65 para 74
anos, o que representa um resultado espetacular em tão curto período.
Mas outros países estão acima de 80 anos.
A educação foi a que mais avançou, com o IDHM (Indicador de
Desenvolvimento Humano Municipal) passando do trágico 0,28 em 1991 para
0,64 em 2010. Foi o maior avanço em termos de ritmo, mas ainda é o que é
o nosso pior indicador, pelo trágico que era o ponto de partida. Neste
indicador de educação, um componente é que a população de 18 a 20 anos
com ensino médio completo passou de 13% para 41%, um gigantesco avanço,
mas também um imenso atraso a recuperar.
Os dados aí estão, o Brasil acordou mesmo, e está avançando a passos
largos, mas ainda está a anos luz das necessidades para um país
minimamente equilibrado, para uma vida digna no andar de baixo, e um
luxo menos espalhafatoso no andar de cima. Não há dúvida de que a
injeção de recursos na base da sociedade foi essencial para este
despertar, pois a partir de um certo nível de falta de recursos a
pobreza se transforma também em falta de oportunidade, na chamada
armadilha da pobreza. Esta armadilha está sendo rompida.
O entusiasmo inicial de quem olha apenas para o PIB, que chegou a dar
um salto muito expressivo, é míope, por olhar essencialmente para o
consumo imediato e de fortes repercussões no mercado, com a compra, por
exemplo, da linha branca e de carros. Uma família ter geladeira
significa que a comida que pode ser guardada, que o remédio não estraga.
O carro não é o problema que se proclama – parece até divertido os mais
aquinhoados acharem um acinte pobre ter carro – pois o problema está na
ausência de transporte público para os deslocamentos de milhões se
dirigindo para basicamente os mesmos destinos nos mesmos horários em
transporte individual. O uso do carro para deslocamentos familiares
diversificados não é a questão central, e sim a insuficiente presença do
sistema público de transporte de massa.
É este segmento de expansão do acesso ao básico que está diminuindo.
Na análise da PNAD de 2012 sobre a posse de bens duráveis, “Em 98,7% dos
domicílios particulares permanentes investigados em 2012 havia fogão.
Nas regiões Sudeste, Sul e Centro-Oeste, os percentuais dos que tinham
esse bem superou 99%. Nas Regiões Norte e Nordeste essas proporções
foram, respectivamente, de 97,3% e 97,5%. A pesquisa confirmou o avanço
na posse de alguns bens duráveis de 2011 para 2012, tais como: geladeira
(de 95,8% para 96,7%); máquina de lavar roupa (de 51,0% para 55,0%) e
televisão (de 96,9% para 97,2%).(…) Em 2012, os percentuais de
domicílios em que ao menos um morador possuía carro ou motocicleta para
uso pessoal foram de 42,4% (26,7 milhões de unidades) e 20,0% (12,6
milhões de unidades), respectivamente.” (PNAD 2012, IBGE, p. 72)
Esta inclusão pelos bens duráveis deve sem dúvida continuar, pois não
se concebe um domicílio sem geladeira, e muito menos sem luz, que era
uma dimensão trágica de milhões de pessoas antes do Luz para Todos. Mas o
impacto desta linha de atividades deve tornar-se menor, pelo nível
alcançado. O importante aqui, é que conforme avança o nível de renda e a
sociedade passa a ter acesso ao essencial, gera-se uma diversificação
de demanda. Não é o volume de atividades que diminui, tanto assim que
temos o menor desemprego da história, mas a sua composição que se
desloca.
As pessoas passam a ter necessidade de melhorar o entorno da casa, em
particular com saneamento, urbanização decente, infraestruturas de
bairro, o conjunto das coisas que não se resolvem por consumo
individual, e sim por consumo coletivo. Uma família não resolve sozinha a
questão do esgoto ou dos alagamentos. E consumo coletivo exige
políticas públicas. Um sistema de esgoto instalado gera muito bem-estar
nas famílias, coisa que não é medida pelo PIB, e inclusive pode
diminuí-lo ao reduzir as doenças e hospitalizações. Calcula-se que um
real investido em saneamento reduz em 4 reais os gastos com saúde.
Economizar dinheiro racionaliza a composição dos nossos gastos, mas
não aumenta o PIB. Aliás o que aumenta o PIB é jogar pneus e fogões
velhos nos rios e córregos, pois isto obriga a contratar empresas para o
desassoreamento, o que “ativa” a economia. Além do tamanho do PIB,
aliás perfeitamente razoável na conjuntura (2,3%), temos de olhar para a
qualidade do PIB.
As áreas como saúde e educação tornaram-se eixos muito mais
importantes do gasto das famílias. Grande parte deste esforço passa sob
forma de consumo coletivo através de serviços públicos – é o imposto
convertido em renda familiar de forma indireta – e não tem impactos
imediatos de aumento do PIB. O investimento que fazemos na educação dos
jovens hoje é essencial, mas irá se reverter em melhor produtividade
sistêmica dentro de dez ou quinze anos, quando este jovem se tornar mais
produtivo.
As grandes infraestruturas que são objeto hoje de importantes
investimentos têm características semelhantes. Uma ferrovia que reduz o
custo tonelada-quilómetro do transporte de produtos representa hoje um
sacrifício, mas amanhã significará maior produtividade e aumento do PIB.
Investimentos também mobilizam recursos e aumentam o PIB, mas ainda sem
os impactos de dinamização do conjunto de atividades produtivas de uma
região que rompe o seu isolamento. É preparar o amanhã.
Para muitos, é estranho ver pleno emprego e forte avanço da qualidade
de vida das famílias, frente a um PIB relativamente menor. Mas não há
paradoxo, apenas uma mudança da composição inter-setorial das nossas
atividades. A atividade econômica é muito mais do que shopping, linha
branca e automóvel. Quanto mais avança a sociedade, maior é a proporção
de consumo de bens imateriais como educação, saúde e cultura, e maior é a
presença das atividades públicas. Sai simplesmente mais barato ter
sistemas universais e gratuitos, e a universalização é essencial para a
redução das desigualdades.
O Brasil está mudando, e rapidamente. Olhar com lentes antigas não
ajuda. Está aumentando a dimensão das políticas sociais no conjunto das
atividades econômicas do país, a economia criativa e o conhecimento em
geral estão passando a ocupar o centro das atividades, infraestruturas
integradoras estão redesenhando as relações entre os territórios. Não
basta olhar para a linha branca e o Bolsa Família. O perfil de consumo
está mudando. A convergência do aumento dos salários, da expansão da
previdência, de inúmeros programas como Pronaf, Pronatec, Prouni,
Territórios da Cidadania – são cerca de 150 programas de inclusão ao
todo – está gerando uma nova realidade. Frente às necessidades, é muito
pouco. Frente ao passado, é um despertar, e o caminho da inclusão, como
vetor de dinamização do desenvolvimento, continua central.
(*) Ladislau Dowbor é professor da PUC-SP nas áreas de economia e
administração, e consultor de várias agências das Nações Unidas.
Fonte: http://dowbor.org/2014/03/ladislau-dowbor-os-potenciais-dos-programas-antipobreza-fevereiro-2014-2p.html/
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