terça-feira, 21 de maio de 2013

Um discurso sobre as ciências: Apontamentos de leitura



Por Ernaldina Sousa Silva Rodrigues

Boaventura Sousa Santos nasceu em Coimbra, em 15/11/40. Doutorou-se em Sociologia do Direito pela Universidade de Yale (1973). Professor Catedrático da Faculdade e Economia da Universidade de Coimbra. Professor Visitante da Universidade de Wisconsin Madison, da London Shool of Economics da Universidade de São Paulo e da Universidade dos Andes. Diretor do Centro de Estudos Sociais da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra. Diretor do Centro de Documentação 25 de Abril da Universidade de Coimbra. Diretor da Revista Crítica de Ciências Sociais. Tem vários livros publicados, dentre eles: Introdução a uma Ciência Pós-Moderna (1989), Pela Mão de Alice: O Social e o Político na Pós-Modernidade (1994) e a Crítica da Razão Indolente. Contra o Desperdício da Experiência (2000).

Um Discurso sobre as Ciências é uma versão ampliada da Oração de Sapiência proferida por Boaventura na abertura das suas aulas na Universidade de Coimbra, no ano de 1985. O texto está organizado numa introdução e três partes. As partes estão divididas em O paradigma dominante, A crise do paradigma dominante e o paradigma emergente.

Estamos a quinze anos do final do século XX (p.5). Boaventura inicia o seu discurso  marcando o ano em que o escreveu: 1985. Trata da ambigüidade e da complexidade da situação do tempo presente , que ele denomina um tempo de transição, em sincronia com muita coisa que está além ou aquém dele, mas descompassado em relação a tudo o que habita (p.6).

Caracteriza sucintamente a ordem científica hegemônica. O modelo global de racionalidade científica é totalitário porque nega o caráter racional a todas as formas de conhecimento que não se pautam pelos seus princípios epistemológicos e pelas suas regras metodológicas.

Analisa os sinais da crise da ciência hegemônica, distinguindo as condições teóricas e as condições sociológicas da crise. As condições teóricas propiciaram grande avanço e aprofundamento do conhecimento que permitiu ver a fragilidade dos pilares em que se funda. Nas condições sociais, quaisquer que sejam os limites estruturais do rigor científico, não restam dúvidas de que o que a ciência ganhou em rigor nos últimos quarenta ou cinqüenta anos perdeu em capacidade de auto-regulação (p.34).

Trata-se do paradigma de um conhecimento prudente para uma vida decente. Explica que a natureza da revolução científica que atravessamos ocorre numa sociedade revolucionada pela própria ciência. Sendo assim, o paradigma a emergir dela não pode ser apenas um paradigma científico ou um paradigma prudente, precisa ser um paradigma social ou o paradigma de uma vida decente (p.37).

Faz esse percurso balizado nas seguintes teses: a falta de sentido em se fazer distinção entre ciências naturais e ciências sociais; as ciências sociais como pólo catalisador para se operar a síntese entre elas; para isso, as ciências sociais terão de recusar todas as formas de positivismo lógico ou empírico ou de mecanicismo materialista ou idealista com a conseqüente revalorização do que se convencionou chamar humanidade ou estudos humanísticos; a síntese não visa uma ciência unificada, nem uma teoria geral, mas um conjunto de galerias temáticas onde convergem linhas de água; à medida que se der esta síntese, a distinção hierárquica entre conhecimento científico e conhecimento vulgar tenderá a desaparecer e a prática será o fazer e o dizer da filosofia da prática. (p. 9-10).

À medida que as ciências naturais se aproximarem das ciências sociais estas aproximam-se das humanidades. A concepção humanística das ciências sociais enquanto agente catalisador da fusão progressiva das ciências naturais e das ciências sociais coloca a pessoa, o ser humano, enquanto autor e sujeito do mundo, no centro do mundo. Toda a natureza é humana, não há natureza humana (p.44). 

O mundo, que hoje é natural ou social e amanhã será ambos, visto como um texto, um jogo, um palco ou uma autobiografia. Jogo, palco, texto ou biografia, o mundo é comunicação e por isso a lógica existencial da ciência pós-moderna é promover a <<situação comunicativa>> tal como Habermas a concebe. (p.45).

Na ciência moderna o conhecimento avança pela especialização rigorosa e restrita ao objeto que incide. O dilema da ciência moderna: o seu rigor aumenta na proporção direta da arbitrariedade com que espartilha o real.(p.46). 

No paradigma emergente o conhecimento é total e local voltado para grupos sociais concretos para projetos de vida locais (p.47). A fragmentação pós-moderna não é disciplinar, é temática. Os temas são galerias por onde os conhecimentos progridem ao encontro uns dos outros. É um conhecimento que reside nas condições de possibilidades de ação humana projetada no mundo a partir de um espaço-tempo local. Esse conhecimento constitui-se a partir de uma pluralidade metodológica, de uma transgressão metodológica” e uma tolerância discursiva (p. 48-49).

A ciência cria. Os pressupostos metafísicos, os sistemas de crenças os juízos de valor são parte integrante da explicação científica da natureza ou da sociedade. A ciência do paradigma emergente é mais contemplativa do que ativa. O conhecimento científico ensina a viver e traduz-se num saber prático. Tenta dialogar com outras formas de conhecimento deixando-se penetrar por elas. Valoriza e reabilita o senso comum. Sensocomunica-se com um conhecimento tecnológico que deve traduzir-se em sabedoria de vida. Essa sabedoria assinala os marcos da prudência à nossa aventura científica. A prudência é a insegurança assumida e controlada. 

Assim, Boaventura traça as características do paradigma emergente da pós-modernidade, destacando que todo conhecimento científico-natural é científico social, é local e total, é autoconhecimento, visa constituir-se em senso comum.

Finaliza ressaltando que se todo conhecimento é autoconhecimento, também todo o desconhecimento é autoconhecimento. 

O discurso de Boaventura Sousa Santos é complexo e centra-se na crise da ciência moderna e da ciência pós-moderna. Ajuda-nos a pensar a ambigüidade e a complexidade do conhecimento. Pessoalmente, encaro esse olhar de Boaventura como uma fonte de renovação do debate sobre o rigor científico, a valorização do senso comum e do saber prático. Afinal, todo conhecimento da ciência provém do senso comum. O mundo não se reduz à ciência, somos seres transcendentes e reais, não ideais. A ciência se constitui por meio da vida cotidiana. Então, porque desprezar o senso comum? E o saber do sujeito, ou indivíduo ou cidadão? A nossa realidade é explicada de acordo com as nossas vivências e necessidades, envolvendo vários condicionantes sociais. A explicação dessa realidade gera ambigüidades, contradições e complexidade.

Esse texto pode ser extremamente útil para aquelas pessoas que desejarem conhecer o pensamento de Boaventura sobre ciência hegemônica e contra-hegemônica, a valorização do conhecimento local, senso comum, das culturas locais, dos grupos sociais, o fortalecimento das identidades locais e a valorização do auto-conhecimento. 

Referência: 

SOUSA SANTOS, Boaventura. Um discurso sobre as ciências. 98 ed. Porto: Ed. Afrontamento, 2002.

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