Em 2011, na esteira de um renovado interesse por Marx e por sua crítica ao capitalismo, Terry Eagleton publicou um livro intitulado “Marx Estava Certo”.
Cada um dos dez capítulos do livro apresenta uma crítica usual ao
marxismo (na maior parte das vezes oriunda do senso-comum) e a resposta
de Eagleton. O livro é uma leitura interessante para qualquer leitor
interessado, mas as dez críticas selecionadas respondiam a critérios
diversos, como o contexto britânico e a subjetividade do autor.
O livro de Eagleton pretendia desenvolver subsídios para o evidente retorno da crítica marxiana ao palco do debate político mundial.
Desde a crise de 2008 a percepção do público em geral havia se
transformado: subitamente, o capitalismo deixou de ser encarado como um
sistema natural e as alternativas – ou ao menos a busca por elas –
ressurgiram. A obra marxiana (re)apareceu então como um manancial
importante onde poderíamos encontrar algumas respostas – ou pelo menos
perguntas mais adequadas.
No Brasil, uma efetiva polarização social
vem se expressando nos últimos anos através de uma polarização do
debate eleitoral. Termos como comunista, socialista, vagabundo e Cuba
voltaram definitivamente à cena. Se Terry Eagleton passasse uma
temporada em terras tupiniquins, talvez sentisse a necessidade de
escrever um complemento ao seu livro, adaptado ao contexto nacional. O
que se segue abaixo é uma colaboração nesse sentido, tentando responder
brevemente a alguns mitos, enganos, ignorâncias e falsificações acerca
do sentido da obra marxiana.
1. Não é franciscanismo.
“É comunista, mas tem Iphone!”
A crítica marxiana ao capitalismo não é uma crítica ao modo de distribuição da riqueza, mas ao seu modo de produção. Enquanto
a forma de produção das riquezas estiver organizada pela separação
entre os proprietários dos meios de produção (os capitalistas) e os
proprietários de sua própria força de trabalho (os trabalhadores) é
impossível garantir uma redistribuição da riqueza de forma duradoura. A
caridade individual pode garantir um lugar no paraíso para o bom cristão, mas não altera em nada uma questão social. Ao contrário, a transformação da forma de produção da riqueza implica transformação da sua forma de distribuiçtão.
Outra dimensão da crítica marxiana é o reconhecimento dos imensos
poderes produtivos criados pelo capitalismo: o marxismo também não é um primitivismo
– uma ideia inocente de retorno a um estado natural. Ao contrário, é
esse imenso poder produtivo da humanidade que aparece como pré-condição
para a superação do capitalismo. Em outras palavras: o Iphone não é o problema, mas sim que ele represente uma tecnologia vedada à maior parte da população mundial. Os comunistas não querem um mundo sem smartphones, mas um em que esse tipo de tecnologia não seja acessível apenas para uma minoria.
2. Não é um passo-a-passo para o comunismo.
“O ser humano é egoísta por natureza!”
Quem lê O Capital em busca de um passo-a-passo para uma sociedade comunista, se decepciona. O subtítulo do livro, muitas vezes ignorado, é “Crítica da Economia Política”. O próprio Marx define o comunismo da seguinte maneira:
Ou seja, comunismo é meramente a superação
do modo de produção capitalista. A própria ideia de que o comunismo
pudesse ser estabelecido através um “plano” definido nos mínimos
detalhes por uma pessoa é expressão de um idealismo combatido
pela própria crítica marxiana. Essa ideia normatizadora (“o comunismo
tem que ser desse ou daquele jeito”) estaria diretamente relacionada à
outra – uma normatização de como as pessoas deveriam ser para uma
sociedade comunista “funcionar” (desinteressados, sem individualidade
etc). Essas ideias são traduzidas pela clássica imagem de uma sociedade
onde todos comem a mesma comida (ruim!), vestem a mesma roupa (cinza!) e
desempenham trabalhos manuais (repetitivos!).
Em Marx, ao contrário, o que encontramos é uma radical percepção da dimensão plástica
do humano – isto é, que não existe uma natureza humana imutável – e do
respeito à individualidade – que não se confunde como individualismo.
Essa percepção impossibilita qualquer previsão (ou normatização) sobre
como as pessoas seriam em uma sociedade diferente e ainda inexistente. O
ponto fundamental é afirmar as possibilidades concretas e imediatas de
transformação da sociedade – mesmo naquilo que parece mais natural -,
não a determinação a priori do resultado dessa transformação.
3. Não é um totalitarismo.
“O comunismo matou um trilhão de pessoas!”
Uma abordagem comum nos últimos anos vem
sendo a posição anti-intelectual que vincula a crítica marxiana com os
horrores do stalinismo e/ou do totalitarismo em geral. Essa vinculação
seria responsável por uma mácula primordial, onde marxismo redundaria
automaticamente em totalitarismo. Os críticos menos ignorantes (mas
ainda assim bastante ignorantes) pensam ter encontrado no conceito de “ditadura do proletariado” justamente o termo que expressa essa vinculação necessária.
Mas o conceito de “ditadura do proletariado” não tem nenhuma relação com as ditaduras do século XX – regimes anti-democráticos, reacionários, militarizados e assassinos. No século XIX, conforme demonstrou o historiador Hal Draper, o conceito de ditadura tinha um sentido muito mais próximo de sua origem, na Roma antiga (dictatura): “Essa
instituição constituía um exercício de poder emergencial por um cidadão
confiável com propósitos e duração limitada, no máximo seis meses. Seu
objetivo era preservar o status quo republicano”.
Em Marx a palavra se recobre de um novo sentido – a ditadura de uma classe, não mais para a preservação do status quo, mas para a sua transformação. Quando se fala em “ditadura do proletariado” (e, vale lembrar proletariado quer dizer assalariado)
a imagem que devemos conjurar não são campos de concentração para a
classe média ou pelotão de fuzilamento para os ricos, mas um período de
transição no qual a condução política da sociedade é fruto da
deliberação direta dos trabalhadores. Ecoando Marx, F. Engels definiu
assim a ditadura do proletariado:
4. Não é datada.
“O capitalismo já não é mais como no tempo do Marx!”
Essa perspectiva supõe um reconhecimento do caráter científico da crítica marxiana, mas apenas para retirar seu caráter político.
O argumento estabelece então que a crítica marxiana é correta, mas se
aplicaria apenas ao capitalismo do século XIX. O capitalismo do século
XX, ao contrário, seria radicalmente diferente – seja pela suposta
redução do número de trabalhadores que desempenham tarefas manuais, pela
expansão do ramo de serviços ou simplesmente pelo avanço tecnológico.
O que essa posição ignora é que a crítica marxiana é uma crítica aos elementos fundamentais
do Capitalismo – como trabalho assalariado, a dinâmica do capital e o
dinheiro como mediação social. E justamente por ser uma crítica desses
elementos, inclui cada uma das “novidades” que são citadas para declarar
sua irrelevância. Enquanto a produção social estiver organizada de
maneira capitalista, a crítica marxiana terá validade e relevância.
O melhor antídoto contra falsificações e
mistificações da crítica marxiana ao capitalismo é a leitura direta da
obra do próprio Marx. Felizmente, atualmente dispomos de boas edições e excelentes materiais de acompanhamento para essa tarefa, além de cursos frequentes nas principais universidades.
Marx não tem todas as respostas – ainda que coloque muitas questões. Sua obra não fornece caminhos fechados ou dogmas, mas um método e uma crítica. A obra marxiana é, sobretudo, uma plataforma de pensamento – ombros de um gigante sobre o qual podemos nos apoiar para vermos muito além do nosso horizonte imediato.
Fonte: < https://capitalismoemdesencanto.wordpress.com/2015/05/18/quatro-mitos-sobre-a-critica-de-marx-ao-capitalismo-ou-o-que-a-critica-marxiana-ao-capitalismo-nao-e/>
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