sexta-feira, 5 de abril de 2013

Os rios são profundos como a alma


"Quando escrevo, repito o que já vivi antes.
E para estas duas vidas, um léxico só não é suficiente.
Em outras palavras, gostaria de ser um crocodilo
vivendo no rio São Francisco. Gostaria de ser
um crocodilo porque amo os grandes rios,
pois são profundos como a alma de um homem.
Na superfície são muito vivazes e claros,
mas nas profundezas são tranqüilos e escuros
como o sofrimento dos homens."
 João Guimarães Rosa

terça-feira, 2 de abril de 2013

Pobreza, desigualdade, exclusão e cidadania: apontamentos de leitura



Por Ernaldina Sousa Silva Rodrigues

Os conceitos de pobreza, desigualdade, exclusão e cidadania foram construídos e reconstruídos ao longo do tempo de nossa história. São conceitos relevantes e carecem de entendimento sobre suas diversas manifestações, para ações eficazes por parte de agentes públicos ocupados em compreender a situação de pessoas que se encontram na situação de miséria.

Partindo desse pressuposto, entende-se que Pobreza é denominada uma “condição de indivíduos ou grupos” (SANTOS, p.18), quer dizer, é considerada uma situação de privação de meios adequados de subsistência, determinada pela falta de acesso ao saneamento, à habitação, à educação, à saúde e até mesmo à liberdade. Nesse sentido, pobreza = privação de necessidades.

Por sua vez, a desigualdade é uma propriedade da distribuição da riqueza em uma dada população ou sociedade. (SANTOS, 2009).  Dessa forma, compreende-se que a grande questão não é a pobreza, é a distribuição de renda, é a desigualdade social. A sociedade gera riqueza que é apropriada apenas por alguns segmentos sociais. Os indivíduos atingidos pela situação de privação são os excluídos que não têm acesso aos bens garantidos pelo mercado e pelo Estado. Dessa forma, desigualdade = distribuição de renda.

Na concepção de Santos (2009, p. 18), “a pobreza é uma condição que afeta os indivíduos – ou seja, os membros de uma população –, a desigualdade refere-se ao conjunto população em sua totalidade”.

O termo exclusão no contexto da dinâmica social, do mundo capitalista contemporâneo, refere-se precisamente às barreiras impostas a alguns indivíduos no seu caminho de acesso a benefícios garantidos pelo Estado, ou mesmo que podem ser adquiridos através do mercado. Estes indivíduos, na prática, não pertencem à comunidade constituída por este Estado-Sociedade-Mercado. (SANTOS, 2009). O conjunto da população, ou melhor, os segmentos sociais, não contemplados pela distribuição de renda são enxotados, empurrados para as margens da sociedade. A partir daí esses segmentos passam a compor a grande massa dos excluídos. Infere-se que nem o Estado e muito menos o mercado possibilitam um mínimo de qualidade de vida aos excluídos. Nessa ótica, exclusão = restrição.

Já a Cidadania é o oposto da exclusão. Implica sentimento de pertencimento e lealdade. Cidadão é aquele que tem acesso aos bens de direito, acesso a uma renda adequada e desfruta de um padrão de vida comum. “Um indivíduo que desfruta da condição de cidadão é aquele que goza dos direitos consignados pelo Estado, bem como da possibilidade de acesso a uma renda adequada, que lhe permita desfrutar de um padrão de vida comum a seus concidadãos”. (SANTOS, 2009). Quando existe ausência de acesso aos bens necessários para que se tenha uma vida digna, pode-se dizer que os excluídos tem sua cidadania negada. Nessa perspectiva, cidadania = direitos.

Sendo assim, pode-se dizer que a desigualdade gera a pobreza que gera a exclusão. Entende-se, assim, que a sociedade está estruturada a partir da desigualdade.

Até a década de 1970 esses problemas eram considerados como dependentes do crescimento econômico. Porém, a realidade demonstrava outras faces. No caso brasileiro, o foco deslocou-se da pobreza para o problema da desigualdade, acreditado como mecanismo de reprodução da pobreza. (SANTOS, 2009). Quer dizer que a desigualdade social é um dos principais mecanismos de produção e reprodução da pobreza e que o problema no Brasil não está localizado na geração de renda.

Contudo, no Brasil ainda utiliza-se a renda como critério de pobreza, porque se acredita que esse critério ainda é útil. As razões para a utilização desse fundamento seriam: a) a economia é fortemente monetizada; b) o Brasil dispõe de dados estatísticos suficientes para se estimar a renda mínima necessária à sobrevivência de indivíduos e famílias; c) também, o País dispõe de dados estatísticos suficientes para se identificar quem não alcança a renda mínima. (ROCHA, 2008, apud, SANTOS, 2009).

Ademais, usar a renda para definir o pobre pode até ser um recurso necessário, mas não expressa as razões pelas quais a pessoa é pobre, ainda que pode-se identificar quem realmente precisa de ajuda do Estado. Na concepção de Santos (2009), o critério de renda se apresenta como uma limitação por não contabilizar os eventuais ganhos de bem-estar de uma população, obtidos por meio de investimentos públicos em serviços essenciais, tais como saneamento, educação e saúde.

Nesse sentido, a renda por si só não expressa a qualidade de vida de uma sociedade, considerando que existem outras necessidades a serem atendidas. Entende-se, com isso, que a persistência da pobreza ou o aprisionamento de determinados grupos sociais nesta situação se dá em decorrência das enormes desigualdades de renda e de acesso a serviços existentes entre grupos de uma dada sociedade. (SANTOS, 2009, grifo nosso).

Ainda, Santos (2009) considera que o Brasil não é um país pobre. Mas é tão desigual que, mesmo apresentando importante evolução do seu PIB (Produto Interno Bruto) e significativas melhorias das condições de vida de alguns setores, ainda abriga uma enorme quantidade de pobres, que, por sua vez, apresentam baixíssimas perspectivas de mobilidade social ascendente.

Essa mobilidade social depende na visão de Santos (2009), da ocorrência de altas taxas de crescimento econômico, acima de 5% ao ano, durante algum tempo. De outra forma, estima-se que a “implementação de políticas públicas de redistribuição de renda seria um meio mais efetivo de redução do número de pobres do que um crescimento econômico sustentado que ocorresse a taxas consideradas plausíveis, na economia contemporânea (3% ao ano, por exemplo)". (SANTOS, 2009, p. 21-22, grifo nosso).

A discussão das ideias e teorias sobre esses conceitos começa no século XIX com o capitalismo. O capitalismo já nasce com controvérsias, em outras palavras, capaz de gerar riqueza e pobreza. No momento em que a sociedade se ordenou e se realizou, os problemas sociais surgiram. Naquele momento, as pessoas começaram a sair do campo e foram para a cidade.

Acredita-se que a reflexão sobre esses conceitos pode auxiliar governos a criar políticas sociais mais eficazes e efetivas para enfrentar a pobreza.


Referência:

SANTOS, Maria Paula Gomes dos. Pobreza, desigualdade, exclusão e cidadania: correlações, interseções e oposições. In: _________O Estado e os problemas contemporâneos. Florianópolis: Departamento de Ciências da Administração / UFSC; [Brasília] : CAPES: UAB, 2009, p. 16-25.

terça-feira, 26 de março de 2013

Somos um mutirão de todos_apontamentos de leitura


Por Ernaldina Sousa Silva Rodrigues


Guimarães Rosa tratava a vida como “um mutirão de todos, por todos remexida e temperada". A vida nós a fazemos com o mutirão de gente, de pessoas, de indivíduos.  Assim somos nós na concepção bakhtiniana, somos uma mistura de todos, para sermos nós. “Tornamo-nos nós mesmos através dos outros” (BAKHTIN apud FONTANA, 2003, p. 61), remexidos, temperados por um mutirão de pessoas, de vozes e de sentidos. Percebemos-nos e nos fazemos no contato com o outro, nas relações sociais.

No texto Da dialética dos espelhos à autoconsciência, Fontana trata do tema autoconsciência na visão de Bakhtin. Tudo o que é humano tem origem nas relações sociais. “A consciência de nossa própria individualidade organiza-se e desenvolve-se em nossas relações sociais.” (2003, p.61). Tornamos-nos aquilo que somos no contexto das relações sociais. É na relação com o outro que eu começo a me constituir como indivíduo singular. Na relação com o outro vou me tornando social. Não é o outro concreto, mas muitos outros. Por outro lado, no texto A Urdidura do tecido, Lima (2005) recorre a Bakhtin como seu interlocutor para entender o homem, ser constituído histórica e coletivamente nas práticas sociais.

“Ao nascer, cada um de nós mergulha na vida social, na história, e vive, ao longo de sua existência, distintos papéis e lugares sociais, carregados de significados – estáveis e emergentes – que nos chegam pelo outro.” (FONTANA, 2003, p. 62, grifo nosso). “A obra de Bakhtin gira em torno do eixo do eu e do outro [...] O que vemos é determinado pelo lugar de onde viemos.” (LIMA, 2005, p.28). Cada um de nós mergulhou no mundo para ser o que é hoje. Sou consciente de mim por meio do outro. Desperto-me para o mundo exterior por meio da “consciência alheia”. Somos mediados por “parceiros sociais” por meio das relações sociais.

O emergir da consciência passa por distintos papéis que desempenhamos e por lugares sociais que ocupamos em nossas relações sociais. Para entendermos o sujeito e os lugares que ocupa, precisamos olhá-lo com o olhar de multiplicidade. Esse olhar passa pelo contexto histórico e cultural carregado de significados.

A singularidade do sujeito vai se construindo social e historicamente.  “Elaboramos o mundo e nos elaboramos no mundo pela palavra do outro, da qual inicialmente nos apropriamos.” (FONTANA, 2003, p. 63).

“A compreensão não pode manifestar-se senão através de um material semiótico [...] A compreensão é uma resposta a um signo por meio de signos [...] Fora de sua objetivação, de sua realização num material determinado (o gesto, a palavra, o grito), a consciência é uma ficção.” (BAKHTIN apud, FONTANA, 2003, p. 64).

A palavra e a significação são produtos da relação entre os homens. A compreensão não existe sem signos. Para ganhar significação, a palavra precisa de um signo. A palavra passa pelo processo de compreensão. Lima, recorrendo a Bakhtin, interpreta a palavra como “o signo ideológico por excelência. As palavras captam e, consequentemente, indiciam os processos de constituição dos sentidos e dos sujeitos.” (2005, p. 28).

Por meio do outro se forma a autoconsciência do sujeito na visão Bakhtiniana. Papéis e lugares sociais, significados, palavra, compreensão, signos – todas essas concepções constituem o sujeito.

Nota: Mikhail Mikhailovich Bakhtin (1895-1975). Foi um filósofo, pensador russo e pesquisador da linguagem humana.

Referências:

FONTANA, R.A.C. Para além dos espelhos: comunidade dos destinos. In: Como nos tornamos professoras? Belo Horizonte, Autêntica, 2003.

LIMA, M.E.C.C. A urdidura do tecido e O caminho das pedras.  In:  Os sentidos do trabalho – a educação continuada de professores.  Belo Horizonte, Autêntica, 2005.

sexta-feira, 22 de março de 2013

Sobre os Clássicos: apontamentos de leitura




Por Ernaldina Sousa Silva Rodrigues


Todos os clássicos, com certeza, inovaram a forma de pensar a política e a relação entre os homens. Todos eles, ao seu modo, contestaram e interpretaram as contradições e a realidade da época em que viveram, principalmente pelas questões econômicas de poderio, vantagens, monopólio e favores. O poder era, e ainda o é, econômico, e era manipulado pela igreja, pelo absolutismo real e pela burguesia. Parafraseando Cazuza: "a burguesia fede, a burguesia quer ficar rica, enquanto houver burguesia não vai haver poesia". A burguesia está em todas as épocas, muda somente de nome. Qual é a diferença hoje se a política está literalmente ligada ao poder e permeia relações? Que contradições estamos vivendo nesta nossa época que nos impelem a fazer o que estamos fazendo ou a viver em prol de quê? De uma vida melhor? Pelo bem da coletividade?

De alguma forma somos individualistas e partimos da concepção individualista, conforme os clássicos Rousseau, Locke e Hobbes . Rousseau questionou e eu reelaboro seu questionamento: quando é que deixamos de ser voluntários para nos tornarmos servos da escravidão em qualquer sentido da palavra? La Boétie se pergunta pela razão que levaria o homem à obediência, à servidão voluntária. Se a democracia se dá nas relações, conforme Demerval Saviane, o que leva alguns governos a praticarem a Egocracia e o que leva o povo a não exercitar os seus direitos enquanto cidadãos? O que é ser cidadão? Será consentimento ou receio de se expor? Ou o quê? Interessante é que os clássicos confrontaram as ideias e o fazer da época em que viveram por meio da publicação escrita de suas ideias. De certa forma, essas ideias contribuíram para entender a realidade que vivemos hoje. Marx foi mais além ao interpretar e contestar teoricamente e a participar ativamente da transformação da realidade naquela época: “Operários, uni-vos!”.

Uma resposta encontrada na leitura das Obras Clássicas de Rousseau, Locke e Hobbes (Discurso sobre as desigualdades, Segundo Tratado sobre o Governo e alguns trechos de O Leviatã): o que distingue o homem do animal? Rousseau parcialmente responde que seriam diferentes pela faculdade de aperfeiçoarem-se com o auxílio das circunstâncias. Marx foi mais além: o homem se distingue do animal como ser capaz de aperfeiçoar permanentemente os instrumentos de sua sobrevivência. Esse é o grande diferencial do ser humano. É aí que está a contradição. Segundo Marx, se não for esse o ponto, estaremos nos alienando. A vida não existe sem contradição. Então pergunto: que contradições existem em nossas vidas que nos fazem agir e pensar?

Discorrendo sobre o pensamento dos três clássicos (Rousseau, Locke e Hobbes), penso que o que há de comum entre os filósofos contratualistas é que eles partem da análise do homem em estado de natureza. O homem tem direito de natureza, é jus naturale. Todos têm uma visão individualista do homem, ou seja, o indivíduo preexiste ao Estado. Todos eles visam justificar o poder do Estado sem recorrer à intervenção divina. O pacto visa garantir os interesses dos indivíduos, sua conservação e sua propriedade. Se no estado de natureza o indivíduo é livre com o pacto, com o Estado de soberania a liberdade dos súditos está naquelas coisas que o soberano permite. Sendo assim, o Estado se reduz à garantia do conjunto dos interesses particulares.
 
Segundo o professor C. B. Macpherson, em seu livro A teoria política do individualismo possessivo, o contrato surge como decorrência da atribuição de uma qualidade possessiva ao homem que, por natureza, tem medo da morte, anseia pelo viver confortável e pela segurança e é movido pelo instinto de posse e de desejo de acumulação.