Por Ernaldina Sousa Silva Rodrigues
O Estado é uma organização que
exerce o poder supremo sobre o conjunto de indivíduos que ocupam um determinado
território. Sendo assim, não admite concorrência e exerce de forma monopolista
o poder político que é o poder supremo nas sociedades contemporâneas. A
preponderância do Executivo sobre os demais poderes do Estado se justifica
pelas seguintes razões:
- é o Poder Executivo, ou seja, o
governo, que dispõe dos meios coercitivos do Estado;
- é o governo que, por meio do seu
aparato coercitivo, garante o cumprimento das decisões dos outros poderes e
executa as políticas do Estado. É ao governo que compete recolher os impostos
que sustentam o funcionamento de todos os poderes do Estado;
- são as instituições do governo
que garantem a segurança interna dos cidadãos;
- é o governo que exerce o poder de
polícia do Estado, que vai da fiscalização do cumprimento das normas à punição
dos infratores.
- é o governo que transforma em
atos a vontade do Estado, o que é suficiente para fazer dele o poder
preponderante sobre todos os demais;
Por outro lado, O Mercado pode
ser definido como um sistema de trocas do qual participam agentes e
instituições interessados em vender ou comprar um bem ou prestar ou receber um
serviço.
Corrêa (2009) afirma que as
relações entre Estado e Mercado nunca se repetem no tempo, renovando-se
constantemente. O autor usa a dinâmica pendular para explicar as relações entre
Estado e Mercado. Para ele, quando o pêndulo social chega ao seu ponto máximo à
direita e os mecanismos de mercado mostram-se insuficientes para estimular o
investimento privado, o desenvolvimento econômico e o bem-estar social, a
sociedade começa a inclinar-se à esquerda, buscando cada vez mais a intervenção
do Estado como forma de corrigir as falhas de mercado, sanar as suas
insuficiências e recriar as bases para a retomada dos investimentos, a expansão
da economia e o aumento do bem-estar.
De outro modo, quando o pêndulo
social atinge o seu ponto máximo à esquerda e a intervenção do Estado na
regulação da vida social e econômica não se mostra mais capaz de promover o
crescimento econômico e o bem-estar dos indivíduos – passando a ser percebido
como um empecilho ao investimento privado, que é a condição necessária para a
expansão econômica nas sociedades capitalistas, tem início o movimento oposto
da sociedade em direção à direita, com a retração do Estado em favor dos
mecanismos de regulação de mercado.
O autor complementa ressaltando
que a alternância contínua entre os princípios opostos explica-se pela
impossibilidade de se encontrar o ponto de equilíbrio entre ambos e pelas
virtudes e vícios de cada um, além das transformações do pensamento
sociopolítico de cada sociedade em determinada época. Nesse sentido, o Estado figura
como o contraponto indispensável ao mercado nas sociedades capitalistas.
A relação entre Estado, Governo e
Mercado, segundo Coelho (2009), é uma “reflexão socialmente acumulada”, “com
forte viés ideológico, alimentadas por diferentes visões de mundo, concepções e
valores dos quais os indivíduos das sociedades contemporâneas, sem exceção, são
portadores, conscientemente ou não.” (p.13).
As matrizes liberal e marxista
procuram explicar essas relações. A matriz liberal tem raízes no pensamento dos
filósofos iluministas (século XVII) e dos economistas da escola clássica do
século XVIII. Por sua vez, a matriz marxista se inspira no pensamento do
filósofo alemão Karl Marx.
Diante desse quadro conceitual,
as correntes liberal e marxista se formaram combatendo as ideias e a ordem
vigentes e propondo novas e mais justas formas de organizar a sociedade.
O pensamento liberal fundou-se no
Jusnaturalismo e teve influência dos pensadores Thomas Hobbes, John Locke,
Charles Louis de Secondat, barão de Montesquieu (1689-1755), e Jean-Jacques
Rousseau (1712-1778). Nesse estado todos os indivíduos são iguais por natureza
e igualmente portadores de direitos naturais aos quais eles não podem, em
hipótese alguma, abdicar: os direitos à liberdade e à propriedade. Por se
tratar de direitos humanos inalienáveis, a preservação da liberdade e da
propriedade dos indivíduos seria considerada pelos liberais como cláusula
pétrea de qualquer contrato social. Toda ameaça ou tentativa de usurpação
desses direitos seria sempre espúria, pois contraria a razão da existência do
próprio Estado. Ao universalismo intrínseco dos valores liberais estaria ainda
associado um radical humanismo, que romperia com o princípio do fundamento
divino da lei e do poder dos governantes, também vigentes até o século XVIII. A
ideia de que a união política surge de um pacto de submissão, por meio do qual
cada indivíduo abre mão do uso legítimo da sua força física, transferindo-o ao
Estado, repousa sobre a noção, até então desconhecida, de representação popular
como fundamento do exercício do poder político.
Diferentemente do liberalismo, na
corrente marxista a dinâmica das sociedades passa a ser compreendida e
analisada a partir das relações estabelecidas entre os seus grupos sociais
concretos e não mais indivíduos abstratos. Portanto, sob a ordem liberal
dominante na sociedade capitalista – aparentemente livre e igualitária e
pretensamente fundada nas leis da natureza – existiria de fato uma ordem
burguesa, ou seja, que atenderia, antes de tudo, aos interesses econômicos da
burguesia, assegurando o seu lugar de classe dominante na sociedade.
A matriz marxista defende a
história da humanidade como a história das lutas de classe. De acordo com essa concepção, o movimento da
história não seria aleatório ou indeterminado, nem tampouco contínuo, mas se
desenvolveria por meio de contradições, isto é, dialeticamente. O movimento
dialético da história se daria no plano concreto das relações de produção da
riqueza social. Sendo assim, o movimento
da história seria interpretado e explicado por meio do materialismo dialético.
As classes sociais seriam identificadas e definidas por sua inserção no
processo produtivo, resultante da divisão social do trabalho. Em cada período
da história, as classes fundamentais de uma sociedade seriam aquelas
diretamente ligadas ao modo de produção dominante. Esse modo de produção iria
resultar da combinação das forças produtivas e das relações de produção. Marx
explica que antes que surgissem as primeiras civilizações, o modo de produção
predominante teria sido o do “Comunismo primitivo”. Então, a garantia da
preponderância da classe dominante sobre a classe dominada seria a principal
razão do surgimento e manutenção do Estado. A ideologia dominante em uma
determinada sociedade seria também a ideologia da sua classe dominante. O
sistema capitalista é baseado na exploração do proletariado pela burguesia. A
mais-valia é a parte do valor criado pelo trabalho humano e não apropriada
pelos trabalhadores.
A economia e a sociedade
capitalistas passaram por mudanças no
plano político e econômico que afetaram o posicionamento das duas correntes.
Coelho (2009) afirma que, ao longo do século XX, a matriz do pensamento marxista
e a matriz do pensamento liberal iriam sendo enriquecidas com outras
contribuições e aportes analíticos, de forma a poder continuar explicando um
mundo cuja dinâmica não era mais passível de ser compreendida apenas pela ótica
dos teóricos envolvidos. Diante dessa afirmação, pontua-se algumas mudanças:
a) Democratização das sociedades liberais com a adoção do
sufrágio universal masculino. Com o surgimento da democracia, iria se abrir aos
operários industriais a oportunidade de participar do processo político,
elegendo seus representantes, influenciando a ação do Estado de dentro do
parlamento e, eventualmente, chegando ao poder pela via eleitoral;
b) No campo marxista iria se afirmar a percepção de que o
capitalismo havia mudado de padrão, deixando de ser um sistema concorrencial –
em que as empresas disputavam um mercado em relativa igualdade de condições –
para se tornar num sistema monopolista – em que grandes conglomerados
dominariam, de fato, a produção, numa concorrência desigual com as empresas
familiares e de menor porte;
c) Para os liberais duas importantes mudanças ocorridas nas
sociedades capitalistas durante o século XX, que desafiavam a interpretação
liberal dominante no século XIX, precisariam ser explicadas: a compatibilidade
entre democracia e economia de mercado, e a convivência entre esta e a
crescente intervenção do Estado no domínio das relações econômicas;
d) No campo liberal a anterior crença em um mercado
autorregulado deu lugar ao reconhecimento da necessidade de intervenção do
Estado na economia, embora a extensão dessa intervenção viesse a se tornar no
grande ponto da discórdia;
e) De forma análoga a ideia anteriormente consensual de que
governo da maioria e economia de mercado seriam incompatíveis iria se desfazer
chegando inclusive ao seu oposto;
f) Se a democracia dos antigos era, de fato, incompatível
com o liberalismo, a democracia dos modernos passaria a ser vista como
indissociável do liberalismo, tanto quanto os direitos civis e políticos que já
compunham a sua matriz;
g) Assim, a democracia do século XX passaria a ser
adjetivada de liberal e defendida ferrenhamente pelos liberais em contraposição
não mais à democracia dos antigos, mas a uma outra concepção de democracia que
iria surgir no campo de pensamento adversário: a que opunha à democracia
formal, dos países capitalistas, a democracia popular, ou substantiva, dos
países socialistas.
As relações entre Estado e
mercado conheceriam situações extremas ao longo do século XX. É possível identificar
quatro padrões de relação entre Estado e mercado que foram sucessivamente
dominantes em todo o mundo, segundo Coelho (2009): O Estado liberal até a
Primeira Guerra Mundial; o Estado de Bem-Estar Social e o Estado socialista,
que são contemporâneos um do outro; e o Estado neoliberal.
As mudanças de um tipo de Estado
para outro se explicam pelas mutações na estrutura produtiva das sociedades
industriais na virada do século XIX para XX e no acirramento do embate entre as
diferentes forças políticas no interior das sociedades e a confrontação entre
as nações industrializadas movidas por seus interesses econômicos, em busca da
ampliação e defesa de mercados.
O Estado liberal, também
conhecido como Estado mínimo, se imporia na Europa Ocidental contra o poder
ilimitado dos reis, que reivindicavam o exercício do poder absoluto como um
direito divino. Depois, o poder exercido pela realeza passou a ser limitado por
uma constituição. Essa forma de Estado caracterizava-se pela garantia do
direito à propriedade privada e à liberdade econômica e independência aos
indivíduos; garantia do direito e usufruto da propriedade, da proteção da vida,
do direito de ir e vir dos seus cidadãos e da ordem pública; não intervenção do
Estado na economia – mercado como instituição autorregulável; mercantilização
das relações sociais; garantia da participação dos cidadãos nas decisões
públicas por meio de representantes eleitos; adoção do sufrágio universal
masculino; e a distância das classes sociais e neutralidade em relação aos seus
interesses específicos.
O Brasil, no que se refere às
relações entre Estado e Mercado no plano
da regulação das relações econômicas e sociais, foi equivalente aos estados
liberais. O que ocorreu aqui não estava deslocado do que se passava no restante
do mundo ocidental, considerando que o país sempre manteve estreitas relações
econômicas, políticas e culturais com a Europa e os Estados Unidos. A crise de
1929 afetou o Brasil e favoreceu a adoção de um modelo econômico centrado na
substituição de importações e na intervenção estatal. Os estragos da crise
foram sentidos em todo o planeta e também no Brasil.
Após a crise de 1929, começaria a
ser desenhada no Ocidente, o Welfare State Keynesiano, ou o Estado assistencial
ou ainda, o Estado do Bem-Estar Social. Na visão de Coelho (2009), o Estado de Bem-Estar Social sucede o Estado liberal, intervindo na economia e nas
condições sociais, visando melhorar os padrões de qualidade de vida da
população. No Brasil foi criado durante o governo Vargas e era chamado de
Estado desenvolvimentista em decorrência da regulação do mercado e da promoção
do bem-estar por meio de políticas públicas de educação, saúde, previdência,
habitação etc., teve também o papel de promotor da industrialização do país.
O autor (Coelho) discorre também que se
nos países capitalistas centrais a era da industrialização coincidira com o
Estado liberal e antecedera a era das políticas sociais, trazidas pelo Estado
de Bem-Estar Social, no Brasil as fases de industrialização e de criação de
políticas sociais foram concomitantes e coincidentes com o Estado de Bem-Estar Social. No Brasil a construção do Estado desenvolvimentista não viria apenas
acompanhada de políticas sociais e de desenvolvimento econômico, mas também de
uma importante ruptura política. A Revolução de 1930 pôs fim ao Estado
oligárquico e ao sistema de organização institucional sobre o qual ele se
baseava. Coube então ao novo Estado construir, a um só tempo, as novas bases de
desenvolvimento econômico e acumulação capitalista e de legitimação de uma nova
ordem política no país, com a incorporação das massas no processo político. A
montagem do Estado desenvolvimentista e a implementação das políticas sociais
no Brasil estavam diretamente relacionadas ao desenvolvimento industrial do
país. Ainda que as primeiras leis sociais brasileiras datem do final do século
XIX – quando o país ainda estava longe de iniciar o seu processo de
industrialização – aquelas seriam casuais e isoladas, não podendo ser
consideradas como pertencentes a uma política social.
No entanto, com a crise provocada
pela dificuldade cada vez maior de harmonizar os gastos públicos com o
crescimento da economia capitalista, ressurgem as ideias liberais sob a
denominação de neoliberalismo. O Estado neoliberal seria protagonizado pelos
governos de Margaret Thatcher (Reino Unido) e de Ronald Reagan (Estados
Unidos). A agenda neoliberal seria baseada na desregulamentação, privatizações
e abertura de mercados. Os defensores dessa agenda argumentavam ser necessário
desregular os mercados porque o número excessivo de regras e controles estatais
sobre a economia inibia os investimentos privados, comprometendo o crescimento
econômico. A favor das privatizações, alegava-se que as empresas de propriedade
do Estado seriam ineficientes e deficitárias, porque mantidas sob a proteção do
poder público ao abrigo das leis do mercado. Com a privatização as empresas
poderiam se tornar eficientes e lucrativas, além de tirar do Estado o ônus pela
sua manutenção. A abertura dos mercados nacionais para a concorrência
internacional, era tida como única forma de produzir uma modernização de todos
os setores da atividade econômica, conferindo-lhes eficiência e
competitividade.
Os liberais do passado propunham
que o Estado deixasse de intervir nas relações econômicas entre os agentes
privados para que o mercado pudesse funcionar adequadamente como mecanismo
autorregulador. Já as críticas dos neoliberais ao Estado do Bem-Estar Social
são dirigidas à sua intervenção específica do Estado em determinadas esferas das
relações econômicas como o mercado de trabalho, mercado de capitais e mercados
de bens e serviços. Quanto às políticas sociais, estas manteriam seu lugar na
agenda do Estado como direitos de cidadania e instrumentos de promoção da
equidade.
Uma das características marcantes
do Estado neoliberal é o aumento das disparidades de renda entre ricos e
pobres. Essas disparidades causam indignação, revolta e injustiças ameaçando a
paz e a dignidade das pessoas.
Para Ricardo Corrêa Coelho (2009), comparar o
Estado neoliberal às formas de Estado passadas é sem dúvida difícil. Para
compará-la, há necessidade de um distanciamento temporal.
O que podemos considerar é que as
duas matrizes, liberal e marxista, animam e guiam até hoje a ação dos
indivíduos no Estado e no mercado.
Referência:
COELHO, Ricardo Corrêa. Estado, governo e mercado / Ricardo Corrêa Coelho. - Florianópolis: Departamento de Ciências da Administração / UFSC; [Brasília]: CAPES: UAB, 2009.